«Estou condenado», pensa Bunny Munro num súbito momento de autoconsciência reservado para aqueles que irão morrer em breve. Sente que algures no caminho cometeu um grave erro, mas esta constatação passa num terrível segundo e desaparece — deixando-o num quarto do Hotel Greenville, de cuecas, sem nada além de si mesmo e dos seus apetites.

Fecha os olhos e imagina uma vagina ao calhas, depois senta-se na beira da cama de hotel e, em câmara lenta, encosta-se à cabeceira acolchoada. Prende o telemóvel com o queixo e, com os dentes, quebra o selo de uma garrafa miniatura de brande.

Esvazia a garrafa pela goela abaixo, atira-a para o outro lado do quarto, após o que estremece, engasga-se e diz para o telemóvel:

— Não te preocupes, amor, vai tudo ficar bem.

— Tenho medo, Bunny — diz a mulher, Libby.

— Tens medo de quê? Não tens qualquer motivo para ter medo.

— De tudo, tenho medo de tudo — diz ela.

Mas Bunny apercebe-se de que alguma coisa mudou na voz da mulher, os suaves violoncelos desapareceram, e foi-lhe acrescentado um violino agudo e irritante, tocado por um macaco fugido ou coisa que o valha. Toma nota, mas ainda não compreendeu ao certo o que significa.

— Não fales assim. Sabes que isso não te leva a lado nenhum — diz Bunny e, como um ato de amor, suga com força um Lambert & Butler. É nesse instante que o entendimento chega, o babuíno no violino, a inconsolável espiral descendente da deriva dela, e ele diz: — Foda-se! — e sopra duas furiosas presas de fumo pelas narinas.

— Deixaste de tomar o Tegretol? Libby, diz-me que tens tomado o Tegretol!

Há silêncio do outro lado da linha e depois um soluço quebrado e distante.

— O teu pai voltou a telefonar. Não sei o que lhe diga.

Não sei o que ele quer. Ele grita comigo. Delira — diz ela.

— Pelo amor de Deus, Libby, tu sabes o que o médico disse. Se não tomares o Tegretol ficas deprimida. Como sabes perfeitamente, é perigoso ficares deprimida. Quantas vezes temos de passar por isto, foda-se?

O soluço duplica-se e depois volta a duplicar-se, até se transformar num choro suave e infeliz, e isso faz lembrar a Bunny a primeira noite que passaram juntos —Libby deitada nos seus braços, na agonia de um inexplicável ataque de choro qualquer, num decadente quarto de hotel em Eastbourne.

Lembra-se de ela erguer o olhar para ele e dizer «Desculpa, às vezes fico um bocado emotiva», ou coisa que o valha, e Bunny encosta a borda da mão à virilha e faz pressão, soltando uma palpitação de prazer na parte inferior da coluna.

— Toma simplesmente a merda do Tegretol — diz ele, com mais suavidade.

— Tenho medo, Bun. Anda por aí um tipo a atacar mulheres.

— Que tipo?

— Pinta a cara de encarnado e usa uns cornos vermelhos de diabo.

— O quê?

— Lá no Norte. Deu na televisão.

Bunny pega no comando que está na mesa de cabeceira e, com uma série de golpes e contragolpes, liga a televisão que se encontra em cima do minibar. Com o botão de mute ligado, passa pelos canais até encontrar uma gravação de videovigilância a preto-e-branco, filmada num centro comercial em Newcastle. Um homem, de tronco nu e com umas calças de fato de treino vestidas, serpenteia pelo meio de uma multidão de clientes aterrorizados. Tem a boca aberta num grito sem som. Parece estar a usar cornos de diabo e brande o que parece ser um grande pau preto.

Bunny pragueja em surdina, e toda a energia, sexual ou não, o abandona. Atira o comando à televisão, e esta apaga-se num assobio de estática, com Bunny a deixar a cabeça cair para trás. Concentra-se numa mancha de água no teto, com a forma de um pequeno sino ou do peito de uma mulher.

Algures, nos confins exteriores da sua consciência, fica ciente de um ruído chilreante e maníaco, um acufeno de enraivecida reclamação, com um tom eletrónico e horrível, mas, em vez de reconhecer aquilo, Bunny ouve a mulher dizer:

— Bunny? Estás aí?

— Libby. Onde é que estás?

— Na cama.

Bunny olha para o relógio, sacode a mão para a frente e para trás, mas não consegue focar a visão.

— Pelo amor de Deus. Onde está o Bunny Júnior?

— No quarto dele, acho eu.

— Olha, Libby, se o meu pai voltar a ligar…

— Ele anda com um tridente — diz a mulher.

— O quê?

— Uma forquilha de jardim.

— O quê? Quem?

— O tipo, lá no Norte.

Bunny compreende então que o som gritante e piado vem do exterior. Ouve-o agora por cima da arenga do ar condicionado, e é suficientemente apocalíptico para quase lhe despertar a curiosidade. Mas só quase.

A marca de água no teto está a crescer, a mudar de forma — um peito maior, uma nádega, um joelho sexy de mulher —, e uma gotícula forma-se, alonga-se e treme, separa-se do teto, cai e explode no peito de Bunny. Bunny dá-lhe uma palmada como se estivesse num sonho e diz:

— Libby, amor, onde é que nós vivemos?

— Em Brighton.

— E onde fica Brighton? — pergunta, passando com um dedo ao longo da fileira de garrafas miniatura de bebida dispostas na mesa de cabeceira e escolhendo uma Smirnoff.

— No Sul.

— O que é praticamente o mais longe de «lá no Norte» que se consegue arranjar sem se cair na porcaria do mar. E agora, querida, desliga a televisão, toma o Tegretol, mete um comprimido para dormir, merda, mete dois comprimidos para dormir, e eu estou de volta amanhã. Cedo.

— O cais está a arder — diz Libby.

— O quê?

— O West Pier, está a arder. Cheiro o fumo daqui.

— O West Pier?

Bunny esvazia a minúscula garrafa de vodca pela goela abaixo, acende outro cigarro e levanta-se da cama. O quarto oscila quando Bunny é atingido pela constatação de que está muito bêbedo. Com braços estendidos para os lados e em bicos dos pés, Bunny atravessa o quarto a deslizar até à janela.

Balança, tropeça e agarra-se às cortinas de chita desbotada como o Tarzan a uma liana até recuperar o equilíbrio e se endireitar. Escancara as cortinas com extravagância, e a luz vulcanizada do dia, e os gritos dos pássaros, enlouquecem o quarto. As pupilas de Bunny contraem-se dolorosamente, e ele faz uma careta pela janela, para a luz. Vê uma nuvem negra de estorninhos, a chilrear loucamente por cima da carcaça fumegante, em chamas, do West Pier, que se ergue, impotente, do mar, à frente do hotel.

Pergunta a si mesmo porque não teria já visto aquilo e depois pergunta a si mesmo há quanto tempo está naquele quarto e depois lembra-se da mulher e ouve-a dizer:

— Bunny, estás aí?

— Estou — diz Bunny, fascinado com a visão do cais a arder e dos mil pássaros aos gritos.

— Os estorninhos enlouqueceram. É uma coisa tão horrível. Os bebezinhos deles a arder nos ninhos. Não consigo suportar isto, Bun — diz Libby, com o violino agudo a crescer.

Bunny volta para a cama e ouve a mulher chorar do outro lado do telemóvel. Dez anos, pensa, dez anos, e aquelas lágrimas ainda o afetam — aqueles olhos turquesa, aquela rata alegre, oh, pá, e aquele imperscrutável sentimentalismo —, e ele encosta-se à cabeceira da cama e bate nos órgãos genitais, à macaco, e diz:

— Amanhã estou de volta, pequena. Cedo.

— Tu amas-me, Bun? — pergunta Libby.

— Sabes que sim.

— Juras pela vida?

— Por Cristo e todos os seus santos. Dos pés a essa tua cabecinha, pequena.

— Não consegues vir para casa esta noite?

— Se pudesse, ia — diz Bunny, a procurar os cigarros às apalpadelas na cama —, mas estou a quilómetros de distância.

— Oh, Bunny… seu mentiroso de merda…

A linha perde o sinal, e Bunny diz:

— Libby? Lib?

Olha inexplicavelmente para o telemóvel como se tivesse acabado de descobrir que o tinha na mão, depois fecha-o ao mesmo tempo que outra gotícula de água lhe explode no peito. Bunny forma um pequeno «O» com a boca e enfia nele um cigarro.

Acende-o com o Zippo e inala profundamente, emitindo depois um ponderado fluxo de fumo cinzento.

— Não tens mãos a medir com isso, querido.

Com grande esforço, Bunny vira a cabeça e olha para a prostituta parada à porta da casa de banho. As cuecas verdes fluorescentes palpitam contra a sua pele cor de chocolate.

Coça as trancinhas, e uma fatia de carne cor de laranja espreita de trás do lábio inferior relaxado pela droga. Bunny pensa que os mamilos dela parecem os ativadores daquelas minas que punham a flutuar no mar para rebentar com navios na guerra, ou coisa que o valha, e quase lhe diz isso, mas esquece-se e volta a fumar o cigarro e diz:

— Era a minha mulher. Sofre de depressão.

— Aí não está sozinha, coração — diz ela enquanto atravessa a tremer o tapete Axminster desbotado, com a espantosa ponta da língua a projetar-se, cor-de-rosa, entre os lábios.

Deixa-se cair de joelhos e envolve a picha de Bunny com a boca.

— Não, é uma doença. Está medicada.

— Tanto ela como eu, querido — diz a rapariga, do outro lado da barriga de Bunny.

Bunny parece refletir devidamente sobre aquela resposta enquanto manobra com as ancas. Uma mão negra sem força está pousada na sua barriga, e, ao olhar para baixo, Bunny vê que cada unha tem a representação detalhada de um pôr do
sol tropical nela pintada.

— Às vezes a coisa fica mesmo má — diz ele.

— É por isso que lhe chamam melancolia, amor — riposta ela, mas Bunny mal consegue ouvir, pois a voz dela soa num resmungo baixo e incompreensível. A mão torce-se e depois salta na sua barriga.

— Eh? O que foi? — diz ele, a sugar ar por entre os dentes, e de repente arqueja e ali estava ele, a jorrar do seu coração, outra vez aquele pensamento de fim dos tempos: «Estou condenado.» E dobra um braço por cima dos olhos e arqueia ligeiramente o corpo.

— Estás bem, querido? — pergunta a prostituta.

— Acho que há uma banheira a transbordar lá em cima — diz Bunny.

— Agora cala-te, amor.

A rapariga ergue a cabeça e olha fugazmente para Bunny, e ele tenta descobrir o centro dos seus olhos negros, o pontinho revelador das pupilas, mas o seu olhar perde o propósito e desfoca-se. Pousa-lhe uma mão na cabeça, sente o brilho húmido na nuca dela.

— Agora cala-te, amor — volta ela a dizer.

— Chama-me Bunny — diz ele e vê outra gotícula de água tremer no teto.

— Chamo-te tudo o que quiseres, doçura.

Bunny fecha os olhos e faz pressão nas cordas ásperas do cabelo dela. Sente a suave explosão de água no peito, como um soluço.

— Não, chama-me Bunny — sussurra.