Ensaio-confissão no feminino
on Agosto 25, 2025 at 10:14 am
Publicado originalmente em 2019, chegou (finalmente) às livrarias portuguesas Mudar de ideias (D. Quixote, 2025), da escritora basca Aixa de la Cruz, apelidada como uma das vozes mais inquietantes da literatura espanhola contemporânea, um livro que se tornou um fenómeno de crítica em Espanha, sendo distinguido com o Prémio Euskadi de Literatura, o Librotea Tapado, além de ter sido finalista do Prémio Dulce Chacón.
Dividido em seis capítulos, trata-se, apesar da sua brevidade (cerca de 130 páginas), de um denso ensaio que parte de episódios reais: um acidente que quase lhe roubou uma amiga; a escrita de uma tese de doutoramento; relações falhadas; a ausência de um pai biológico; a experiência do divórcio. Mas, perante isso, e num assumido mergulho no feminismo, Aixa de la Cruz não se limita a uma autobiografia linear, assumindo o risco da autoficção em estado bruto, onde confissão, crítica cultural e reflexão política entrelaçam-se.
Nas páginas deste livro, não há complacência nos relatos, mas uma clara vontade de confronto, de se expor a honestidade, e, ao mesmo tempo, examinar a sociedade onde se inscrevem as suas vivências, como se se tratasse de um exercício narrativo que oscila entre o diário íntimo e a meditação filosófica.
Esse gesto politizado faz todo o sentido quando falamos de uma autora que se afirma feminista não apenas pela militância, mas pela forma como analisa «o peso do patriarcado nas escolhas quotidianas e nas estruturas sociais». Ao falar de si, de La Cruz fala de e para todos sobre como o corpo feminino é marcado pela violência, pela expectativa, pela herança cultural.
Neste sentido, Mudar de Ideias dialoga com outras vozes femininas da literatura, onde Annie Ernaux é uma referência obrigatória, distinguindo-se pelo equilíbrio singular entre consciência de género, erudição académica e franqueza coloquial, mediante uma prosa veloz, fragmentada, de frases que parecem “cuspidas” com urgência e raiva, com o texto a ganhar um misto de crueza e poesia. Se, por vezes, e como já referido, é quase ensaístico, noutras lembra uma carta íntima. Essa heterogeneidade é também parte da sua força, com a leitura a puder ser desconcertante, mas nunca indiferente.
Por outro lado, sente-se um campo semântico associado às confissões, envolvendo culpa, culpados, e, ocasionalmente, expiação, principalmente quando a autora vasculha o seu passado, desde uma infância marcada pela ausência do pai biológico até à sua desconfiança e medo das mulheres (e a autorrealização de um resquício de misoginia interna). Pelo caminho surge a oportunidade de explorar vários temas e eventos, com de la Cruz a relatar os feminicídios na Cidade do México e a sua dificuldade em «não olhar para aquele país com os olhos de uma europeia que observa o Terceiro Mundo». Mas a mira também é apontada à sua Espanha natal, onde a violência contra as mulheres é, sublinha, «sistémica e normalizada».
Num constante diálogo com o leitor, Aixa de la Cruz é conscientemente provocadora e incómoda, muito graças à opção por um tom confessional ou pela exposição descarnada, algo que pode levar a uma discordância com o que escreve a autora natural de Bilbau. Mas é aí que reside a pertinência deste livro, no seu “objetivo” de não procurar agradar, mas fazer refletir, transformar. E numa altura em que a literatura cai, muitas vezes, na tentação de se render ao entretenimento, de la Cruz lembra que escrever é também pensar – e que pensar é, inevitavelmente, interrogar, pôr em causa, confrontar, logo, mudar de ideias, crescer e evoluir.
Apaixonado pelos sons, imagens e histórias que me rodeiam, gosto de refletir essas ideias por via da palavra, seja ela escrita ou falada, mas sempre sentida. O amor pela música, livros e quejandos, é coisa que, em mim, não encontra medida palpável, é forma de respirar que transcende fronteiras, funde ritmos, estilos e filosofias.
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