Para o vestibular 2026 da USP, a Fuvest adotou o livro “Balada de Amor ao Vento” para compor a sua lista de leitura obrigatória. De Paulina Chiziane, pioneira na escrita moçambicana de romance, a narrativa expõe os impactos de uma cultura colonial e questões da subjetividade humana, problematizando as contradições de um sistema sociocultural complexo.
“Que triste é ser gente. Gostaria de ser um animal, ser livre para amar livre, sem leis nem tradições” – trecho do livro ‘Balada de amor ao vento’.
A seguir, saiba mais sobre a obra.
Quem é a autora
Paulina Chiziane nasceu em 1955, em Manjacaze, vila moçambicana localizada na província de Gaza. Ainda criança, se mudou com sua família para os subúrbios da capital Lourenço Marques, atual Maputo. Filha de um alfaiate e de uma camponesa protestantes, teve sua formação primária em uma escola missionária católica. Já adulta, chegou a cursar linguística, sem concluir, na Universidade Eduardo Mondlane.
A autora cresceu durante a colonização portuguesa, que teve o seu fim em 1975, após o movimento anticolonial protagonizado pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), da qual Paulina teve intensa participação.
Porém, o protagonismo feminino que emergiu na época foi silenciado pelo novo Estado, que optou por conservar valores tradicionais. Desiludida com as contradições do projeto nacionalista, Paulina voltou o seu foco para a Cruz Vermelha, onde atuou como enfermeira.
Escreveu contos para jornais na década de 1980 e se tornou a primeira mulher de Moçambique a lançar um romance, em 1990, com “Balada de Amor ao Vento”. Ela se dedicou a temas como colonialismo, racismo e patriarcado, transformando a tradição oral em escrita.
“Paulina abriu a seara para as demais escritoras da modernidade”, pontua Cíntia Kütter, professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).
Entre a premiação que obteve estão José Craveirinha, em 2003, e Camões, em 2021. Em 2005, foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz pela relevância literária e social de suas obras.
O que é importante saber sobre o livro
O título
“Balada de Amor ao Vento” é um título multifacetado, que remete à estrutura híbrida e lírica da narrativa. De maneira concisa, “balada” confere uma leveza poética a um enredo que é denso e que, ao mesmo tempo, apresenta um caráter humano; “amor” se relaciona às tensões entre tradição poligâmica e a monogamia cristã; “vento” fala de liberdade e do dinamismo da história.
Construção narrativa e personagens centrais
Narrado em primeira pessoa, a obra é um romance de formação. Nele, o enredo tanto acompanha o crescimento da personagem Sarnau quanto funciona como uma formação simbólica do leitor ao provocar reflexões sobre, por exemplo, costumes moçambicanos, pobreza e religião.
“Romance de formação é uma teoria alemã, masculina, branca, que afirma que não há espaço para as mulheres alcançarem sua formação, seja espiritual ou material. Sarnau mostra o contrário”, destaca Kütter. São apresentados dois homens ao longo da trama: Mwando, o amor incondicional por quem Sarnau vive uma decepção, e Nguila, o amor tradicional que evidencia as normas sociais patriarcais.
Moçambique como lugar de memória
Por Paulina construir uma narrativa inspirada em suas experiências, há uma verossimilhança entre realidade e ficção. A geografia está presente nas menções sobre o rio Save, a vegetação, as aldeias e cidades moçambicanas.
Paulina, ainda, descreve mitos, rituais e hábitos, como o lobolo, dote nupcial que o noivo deve conceder à família da noiva, e o uso da capulana que, mais que um adorno, é sinônimo de reputação da mulher.
“Sarnau coloca em jogo o ineditismo das suas memórias. Afinal, quem vive em Moçambique conhece essas histórias da memória coletiva”, observa Regina Silveira, doutora em Letras pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
O humano, a tradição e a modernidade
Mwando foi educado em um seminário católico, entrando em choque com os costumes locais, como a poligamia que ele rejeita. Sarnau, por sua vez, não permite que a cultura suprima seus sentimentos, que a impulsionam em direção à modernidade. “A condição humana lida com emoções que a tradição não supera”, analisa Silveira.
Assim, a convivência entre práticas cristãs e tradições ancestrais africanas refletem a complexidade identitária moçambicana e os dilemas internos dos personagens. “O livro traz uma hibridização de aspectos linguísticos e culturais. Nós temos a tradição e a modernidade que parecem antagônicas e não são. A obra coloca em evidência a identidade e a tradição em processo”, comenta a pesquisadora.
SÉRIE ABORDA OS LIVROS DO VESTIBULAR 2026 DA FUVEST
Este é o oitavo de uma série de nove textos que abordam a lista de livros do vestibular da USP deste ano. Pela primeira vez, a Fuvest selecionou obras só de escritoras mulheres. A cada semana, uma obra é tema de reportagem que explica a trajetória da autora e os principais pontos que podem ser cobrados na prova.
Os textos fazem parte do projeto Folha Estudantes, criado para ajudar jovens na preparação para o Enem e outros vestibulares. A Folha oferece assinatura gratuita para estudantes que se inscreverem no Enem; clique aqui para saber mais.