Não é bem de futuro que se trata em “O Último Azul”. Trata-se, antes, de uma alegoria, ou talvez de um desvio no presente que vivemos e conhecemos, ou ainda de um futuro fantástico, que fosse paralelo ao nosso mundo.

Sabemos que o presente exalta a ideia de liberdade tanto quanto a suprime. Não existe ato criminoso que não seja denunciado por uma câmera na rua, mas também não há intimidade que passe despercebida nesse mundo de desejos vigiados.

No filme, o governo toma uma iniciativa que leva o nome animador de “o futuro é para todos”. Ele consiste em recolher as pessoas com mais de 75 anos e confiná-las em abrigos onde disporão, é o que se diz, de conforto e tratamentos gratuitos.

Tereza (Denise Weinberg) não concorda com isso. Mas a vigilância é permanente e cerrada. Ela acaba aprisionada em um “cata-velho” (uma espécie de carrocinha que não leva cachorros, mas idosos). Daí por diante sua batalha pela liberdade será constante.

À parte toda a ambiguidade que cerca os sentidos da palavra liberdade, diga-se logo que, para Tereza, a liberdade significa tomar suas próprias decisões, em vez de entrar no triste ônibus que levará os velhinhos ao asilo. Essa fuga é um dos temas do filme, e fugir significa embrenhar-se no desconhecido. O desconhecido também significa perigo. A liberdade é risco.

Outro tema é o da natureza. No primeiro momento ela surge desfigurada. Estamos numa fábrica de processamento de carne de jacaré. Vemos a carcaça inerte e o sangue desses animais, descendentes dos dinossauros, que representam a vida selvagem e sua crueldade mais que qualquer outro.

Talvez os homens sejam mesmo mais predatórios. Ou nossas trajetórias suponham tantas curvas quanto as daquele rio em que Tereza viaja com o barqueiro Cadu (Rodrigo Santoro). Ela está em busca de um avião: quer voar, quer a experiência de estar livre, no ar, vendo o mundo de cima.

Mas o essencial não vem de cima: vem da natureza, mas não só dela. É o conhecimento de si mesmo. O azul que toma os olhos de Cadu, primeiro, e mais tarde tomará os de Tereza.

Estamos também em outro território caro a Gabriel Mascaro: toda exploração leva a surpresas. Elas podem ser boas ou más, agradáveis ou não, comportam riscos também. A essas surpresas o filme nos leva. Elas podem ser simples: uma planta, um caracol, um barco, uma nova amizade, ou uma luta mortal entre peixes.

Tudo em “O Último Azul” é afirmação de vida: a busca, a aventura, o sofrimento, o medo, o riso. E todas essas palavras contêm a surpresa e o encantamento. O desvio: porque a errância de Tereza é condição para que aconteça com ela tudo o que aconteceu.

Maratonar

Reencontrar a natureza que já não conseguia ver através das palafitas em que vivia é também condição necessária para retomar a existência (e a resistência ao poder), além, por fim, de encontrar o milagre da amizade.

Mascaro tem desenvolvido cada vez mais a arte de criar mundos ao mesmo tempo familiares e estranhos. Talvez aqui tenha chegado ao seu ponto máximo, até agora. Seu “Azul” faz ver o que ninguém vê. E suas imagens mantêm do espectador uma estranha distância: não nos permitem passar da contemplação à familiaridade. É nessa distância que elas nos encantam e ao mesmo tempo inquietam.

É como se esses animais estranhos que aparecem em cena, às vezes tão engaiolados quanto os velhinhos do “cata-velho”, ou mesmo estripados, advertissem que, para além da beleza, existe uma natureza que agoniza enquanto as vidas são cada vez mais vigiadas e controladas.

Não é estranho que tenha ganho o prêmio que ganhou em Berlim. Aqui Mascaro se impõe de vez como um dos maiores cineastas brasileiros contemporâneos.