A decisão está tomada: o Ministério da Saúde vai mesmo avançar com a reorganização das urgências de ginecologia/obstetrícia dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, concentrando a resposta nalgumas unidades, as designadas urgências regionais. Este modelo pressupõe a partilha de equipas obstétricas, ou seja, a deslocação dos profissionais de saúde (nomeadamente médicos) entre as Unidades Locais de Saúde (ULS). Conhecendo a resistência dos médicos em deslocar-se entre hospitais, a ministra da Saúde já anunciou que vai convocar os sindicatos médicos em setembro para discutir o tema.
Ao Observador, os sindicatos recusam que a deslocação entre hospitais seja imposta aos médicos mas admitem que possa ser implementando um modelo de mobilidade voluntária, ainda que com contrapartidas. A presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), Joana Bordalo e Sá, destaca a necessidade de serem melhoradas as condições de base dos médicos do SNS e insiste no caderno de encargos que tem vindo a apresentar nos últimos anos (redução do horário de trabalho para 35 horas ou integração do internato na carreira médica), enquanto o presidente do Sindicato Independente dos Médicos (SIM), Nuno Rodrigues, propõe um conjunto de medidas de incentivo, como a isenção da taxação em sede de IRS do trabalho extraordinário prestado nos serviços de urgência, o aumento do valor/hora pago aos médicos abrangidos pela mobilidade entre ULS e o aumento dos dias de férias.
A intenção de concentrar urgências na área da obstetrícia tem já alguns anos mas nunca foi concretizada. Isto apesar dos alertas de médicos e gestores hospitalares, que têm repetidamente dito que não resta outra saída senão a de concentrar a resposta em determinados locais, perante a falta de médicos obstetras em número suficiente para assegurar as escalas de todas as urgências, particularmente nas regiões centro e sul do país.
Na passada quinta-feira, foi publicado um despacho em Diário da República, no qual a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, pede à Comissão Nacional da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente (o grupo de peritos que tem aconselhado o Governo na área da obstetrícia e pediatria) para entregar no prazo de 30 dias, uma proposta de rede de serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia “consistente com os recursos disponíveis”.
Como o Observador revelou em junho, a comissão, liderada pelo médico Alberto Caldas Afonso, já identificou os serviços de urgências do SNS que devem funcionar no modelo de equipas partilhadas: ao todo, são dez, que deverão dar origem a cinco urgências regionais. Na maior parte dos casos, ainda não está definido em que hospital vai funcionar a urgência regional mas já é certo que, na Península de Setúbal, a urgência de ginecologia/obstetrícia vai ficar localizada no Hospital Garcia de Orta, em Almada.
No entanto, para que os médicos que compõem as equipas obstétricas (não só obstetras mas também pediatras, neonatologistas e anestesiologistas) possam deslocar-se entre hospitais, o Governo terá de legislar sobre a organização de trabalho, o que exige negociação com os sindicatos, como admitiu a ministra da Saúde em entrevista à SIC, em julho.
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O principal problema está relacionado com os vínculos laborais dos profissionais de saúde: quando um médico firma um contrato com uma ULS, está apenas obrigado a prestar serviço nos estabelecimentos de saúde daquela ULS e não em qualquer outra. Uma premissa que o Governo quer alterar — idealmente com a concordância dos sindicatos, de forma a minimizar a contestação. “Não podemos avançar com uma medida destas sem falar primeiro com os sindicatos e sem negociar com os sindicatos esta nova organização do trabalho”, referiu Ana Paula Martins, sublinhando que muitos países estão a “redesenhar a rede de urgências
“Não podemos normalizar a ideia de ter urgências fechadas”, diz ministra da Saúde
Tanto a FNAM como o SIM avisam, desde já, que a mobilidade dos médicos para as denominadas urgências regionais não poderá ser obrigatória, mas somente voluntária. “A mobilidade forçada não resolverá nada. Mobilidade voluntária, sim, mas com incentivos vistos de forma positiva, que valorizem as pessoas”, salienta o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos. Uma posição secundada pela presidente da FNAM. “Nunca aceitaremos uma mobilidade forçada. E mesmo em relação à mobilidade voluntária, terá sempre como moeda de troca um desgaste enorme dos médicos”, alerta Joana Bordalo e Sá.
Nuno Rodrigues salienta que os médicos só aceitarão deslocar-se para trabalhar num local de trabalho diferente daquele onde exercem se forem recompensados por isso — com incentivos de “cariz remuneratório e não remuneratório”. “Se um médico não está a trabalhar no seu local de trabalho, o risco aumenta, e deve ser melhor remunerado por isso. A remuneração/hora deve refletir o risco acrescido e a disponibilidade para trabalhar fora do local de trabalho“, defende o dirigente do SIM, explicando que o risco do trabalho médico noutro hospital prende-se com o facto de o profissional não conhecer a equipa com a qual vai trabalhar, o que poderá criar dificuldades acrescidas.
Nuno Rodrigues não adianta qual o aumento do valor/hora que vai ser proposto ao Ministério da Saúde, e salienta que primeiro é necessário esperar pela convocação da tutela para a reunião, que só deverá ter lugar em setembro, e também pelas propostas que, espera, venham a ser apresentadas pelo Governo. Ainda assim, o responsável sindical indica outros dois pontos que poderão ser propostos pelo SIM e que se podem revelar importantes para a assinatura de um acordo: por um lado a competitividade fiscal e, por outro, o aumento dos dias de férias.
No que diz respeito à vertente fiscal, está em causa uma isenção do pagamento de IRS para as horas extraordinárias nos serviços de urgência. “As taxas de imposto são superiores a 35 ou 40%. Se a isto juntarmos os 11% da Segurança Social, é metade do rendimento de um médico. Este é um grande problema e tem de ser resolvido”, alerta o secretário-geral do SIM, acrescentando que, se os médicos “tiverem um enquadramento favorável, vão aderir à mobilidade”.
Quanto à parte não remuneratória (cada vez mais valorizada pelos médicos mais jovens), Nuno Rodrigues salienta que uma medida importante seria o aumento dos dias de férias para os clínicos que aceitem realizar mais horas extraordinárias nos serviços de urgência — uma medida que o SIM vai propor.
Em abril, em entrevista ao Observador, o diretor executivo do SNS, Álvaro Almeida, sugeriu que a resistência dos médicos em deslocarem-se entre hospitais tem sido o entrave encontrado ao longo dos anos pela liderança do SNS para avançar com concentração de urgências. “Essa questão [da resistência] já se colocava no tempo dos anteriores diretores executivos, nomeadamente do professor Fernando Araújo, e a concentração não avançou por alguma razão. As pessoas têm as suas vidas num determinado local e naturalmente que têm resistência. Não é necessariamente bloqueio, não estou a dizer isso nem podem interpretar o que estou a dizer como tal, mas obviamente resistência sim porque se as pessoas estão num determinado local, naturalmente, preferem estar onde estão”, referiu Álvaro Almeida.
A presidente da FNAM defende que, se for introduzida, a mobilidade entre ULS não vai solucionar os problemas do SNS. “O caminho é valorizar as pessoas, não é usar estas medidas coercivas”, diz Joana Bordalo e Sá, sublinhando que o sindicato que dirige não concorda com a criação de urgências regionais por não estarem garantidos os cuidados de proximidade de que as populações necessitam. “O serviço de proximidade à população deve ser garantido”, defende.
Quanto à mobilidade, a presidente da FNAM vinca que os médicos estão “esgotados”. “Deslocar um médico de um sítio para o outro é mais uma sobrecarga, o caminho não é este”, avisa, acrescentando que a questão de fundo é a necessidade de melhorar as condições de base dos médicos do SNS.
“O caminho é garantir soluções para os médicos estarem nos seus hospitais-base” e para o SNS puder reter especialistas, salienta. Joana Bordalo e Sá relembra, nesse sentido, as medidas que o sindicato que representa tem proposto à tutela: a reposição das 35 horas de trabalho semanais (sendo que cerca de metade dos médicos já se encontra nessa condição), o gozo efetivo dos descansos compensatórios, a reposição dos dias de férias perdidos (25 dias, ao invés dos 22 dias atuais) ou a integração do internato médico na carreira, o que, diz, permitira aumentar a retenção dos médicos recém-especialistas no SNS.