ANÁLISE || Trump está “a agir como um ditador”

A ambição de Trump de levar a repressão ao crime para todo o país vai alimentar tensões e confrontos legais

por Stephen Collinson, CNN

 

O próximo grande confronto nos EUA está a formar-se em torno da vontade de Donald Trump de impor um poder presidencial invulgar. As grandes cidades governadas por democratas estão a ser alvo de uma repressão do crime que já levou tropas às ruas de Washington, DC.  

A retórica de Trump, que afirma que o crime está descontrolado – frequentemente de forma enganosa – segue uma estratégia clássica de líderes autoritários, algo que pode vir a originar fortes tensões entre o governo federal e os estados acerca dos limites do seu poder constitucional e legal.  

As ameaças do presidente alarmaram os democratas, que no domingo advertiram que não há justificação para enviar tropas para cidades como Chicago contra a vontade das autoridades locais.  

“Devemos continuar a apoiar as forças de segurança locais e não permitir que Donald Trump brinque com a vida dos americanos como parte do seu esforço para fabricar uma crise e criar uma distração porque ele é profundamente impopular”, disse o líder da minoria democrata na Câmara dos Representantes, Hakeem Jeffries, à jornalista Dana Bash, da CNN, no programa “State of the Union”.  

Na sexta-feira, Trump disse aos jornalistas que “Chicago será a próxima” e que “ajudaria” Nova Iorque a seguir. Na semana passada, mencionou também Baltimore e Oakland, na Califórnia, argumentando que o crime nessas cidades é “muito grave”.  

A CNN reportou no sábado que a administração Trump tem vindo a planear há semanas o envio da Guarda Nacional para Chicago, segundo dois funcionários. Ainda não está claro quantas tropas seriam destacadas nem quando começariam os envios. 

No domingo, Trump atacou o governador de Maryland, Wes Moore – possível candidato presidencial democrata em 2028 –, que sugeriu que o presidente o acompanhasse num passeio por Baltimore para ver os esforços locais no combate ao crime violento. Trump criticou a cidade, dizendo que estava “fora de controlo (e) dominada pelo crime” e afirmou que não iria lá até que o “Desastre do Crime” fosse resolvido. 

Os críticos de Trump argumentam que as suas ações de enviar a Guarda Nacional para a capital e para Los Angeles, em resposta a manifestações contra as suas políticas de imigração no início do ano, são operações protótipo para repressões nacionais mais amplas.  

No entanto, o presidente tem menos margem legal para enviar tropas federais para cidades e ditar políticas de segurança nos estados do que em Washington, que é um distrito federal. 

As consequências serão enormes se Trump passar de Washington para outras grandes cidades 

Enviar tropas ou agentes federais para patrulhar uma cidade como Chicago ou Baltimore contra a vontade de autoridades estaduais e municipais democratas representaria um novo teste aos poderes presidenciais que Trump procura incessantemente expandir – e ameaçaria a soberania dos estados, algo que os republicanos historicamente defenderam. 

Declarar mais uma emergência nacional para federalizar tropas da Guarda Nacional, normalmente sob comando dos governadores estaduais, provocaria confrontos legais sobre a forma preferida de Trump para desbloquear novos e questionáveis poderes executivos. Na semana passada, sugeriu que poderia declarar uma emergência nacional em Washington para contornar o limite de 30 dias na mobilização de tropas. 


Membros da Guarda Nacional caminham pelo National Mall no sábado, em Washington, DC. foto Jose Luis Gonzalez/Reuters

Uma repressão em Chicago também permitiria a Trump intensificar os esforços de deportações em massa, com um aumento das forças no terreno, numa altura em que parece cada vez mais que este é o seu principal objetivo em Washington. Uma análise da CNN a dados governamentais revelou que, na primeira semana após a administração assumir o controlo da polícia da capital e destacar agentes e tropas federais para as ruas, houve uma ligeira redução nos crimes reportados, enquanto as detenções de imigrantes aumentaram dez vezes em relação à média habitual do ICE (Imigração e Alfândega dos EUA). 

Escolher uma grande cidade democrata permitiria ainda a Trump encenar mais um espetáculo político numa presidência performativa construída sobre eventos televisivos – de cimeiras a assinaturas de leis e negociações. O simbolismo político muitas vezes supera a substância. 

Mas tais ações podem perturbar as cadeias de comando entre autarcas e chefes de polícia e comprometer iniciativas de policiamento comunitário desenhadas para combater o crime violento. E reforçariam a perceção crescente de que Trump está a tentar normalizar o uso anómalo de militares em solo americano para fins políticos. 

Como aconteceu em Washington, uma repressão em Chicago daria a Trump uma nova oportunidade de impor o seu poder conservador e tendências autocráticas a uma população que votou esmagadoramente na sua adversária, a ex-vice-presidente Kamala Harris, em 2024. 

E colocaria os democratas numa posição difícil, forçando-os a equilibrar o repúdio a tomadas federais e táticas duras com o risco de alienar eleitores preocupados com o crime violento e as consequências de políticas migratórias mais permissivas. 

E quem paga por tudo isto? 

O entusiasmo crescente de Trump pelo uso de tropas e agentes federais acabará por levantar a questão dos recursos. Deslocações prolongadas da Guarda Nacional são dispendiosas. Redirecionar agentes federais de outras funções pode afetar a capacidade do FBI de combater o crime transnacional ou o terrorismo. Isso levanta dúvidas sobre a capacidade da administração de reduzir o crime de forma sustentada, já que destacamentos indefinidos são insustentáveis. 

Democratas reagem enquanto Trump pinta um cenário de crise distópica 

Os alertas de Trump sobre supostas cidades sem lei não refletem necessariamente a realidade da ordem pública. Por exemplo, o crime em Washington caiu em 2024 e continua a cair este ano. Em Chicago, a polícia informou na sexta-feira que os homicídios diminuíram 31% este ano e os tiroteios caíram 36%. Ainda assim, isso não significa que os residentes das grandes cidades se sintam seguros. Muitos gostariam de ver mais polícia nas ruas e as cidades e estados têm pedido mais apoio e recursos ao governo federal — mas rejeitam as soluções impostas por Trump. 

As descrições distópicas do presidente parecem cada vez mais uma tentativa de criar uma emergência retórica sobre o crime para justificar métodos draconianos que satisfaçam o seu desejo de parecer forte e de aumentar deportações. 

Enquanto Trump alimenta um clima de crise, os democratas resistem 


Pessoas passam pelo Trump International Hotel & Tower em Chicago, a 7 de março foto Terrence Antonio James/Chicago Tribune/Tribune News Service/Getty Images

O antigo presidente da câmara de Chicago Rahm Emanuel disse no domingo à CNN: “Acho que todos devíamos parar um pouco e perceber que, como comandante-chefe durante dois mandatos, ele só colocou tropas nas ruas das cidades americanas – nunca no estrangeiro. E pensem bem no que isso significa para o país”. 

Emanuel, agora comentador político e de assuntos globais da CNN, sugeriu que o verdadeiro propósito de Trump é reforçar a aplicação das leis de imigração em cidades como Chicago que não cooperam com as autoridades federais em ações contra imigrantes indocumentados. “Isto não terá nada que ver com o combate ao crime”, afirmou. 

Emanuel, que também foi líder democrata no Congresso, chefe de gabinete da Casa Branca e embaixador no Japão, deixou conselhos ao seu partido, que por vezes tem dificuldades em conectar-se com os eleitores sobre a criminalidade. “Temos uma estratégia para combater o crime: mais polícias nas ruas e tirar crianças, gangues e armas das ruas”. 

Jeffries, de Nova Iorque, disse no “State of the Union” que os democratas, como todos os americanos, querem comunidades mais seguras, mas opõem-se aos abusos de poder de Trump. “Devemos cortar o fluxo de armas para estas comunidades. Devemos enfrentar a crise de saúde mental que existe em todo o país — e que, a propósito, Donald Trump está a agravar ao cortar fundos destinados a ajudar pessoas com sofrimento emocional.” 

Líderes democratas locais tentam desmentir alegações de Trump sobre o crime 

No sábado, o governador democrata do Illinois, JB Pritzker, afirmou que o estado não recebeu qualquer pedido ou contacto do governo federal sobre necessidade de ajuda, após Trump ter apontado Chicago como próximo destino da sua ofensiva militar e federal. “Não há qualquer emergência que justifique o presidente federalizar a Guarda Nacional do Illinois, mobilizar a Guarda de outros estados ou enviar militares no ativo para dentro das nossas fronteiras”, afirmou. 

Pritzker garantiu que fará tudo o que puder para resistir à intervenção externa do governo federal. “Continuaremos a cumprir a lei, a defender a soberania do nosso estado e a proteger o povo do Illinois.” 

No domingo, o procurador-geral do Illinois, Kwame Raoul, disse à CNN que o seu gabinete colabora com agências federais como o FBI, a DEA, o ATF e os Serviço Secretos. Acrescentou que estas agências estão treinadas para combater o crime, ao contrário da Guarda Nacional. 

Trump está “a agir como um ditador”, disse Raoul. “Virar os militares contra cidadãos americanos em cidades dentro do nosso próprio país é algo sem precedentes.”