Ao cair da noite, gangues armados percorrem as ruas e famílias pegam em armas para se proteger. O dinheiro pode ser transferido para este sítio através de um sistema bancário informal – mas quem procura levantá-lo é obrigado a pagar até 50% de comissão a indivíduos e grupos que controlam o fornecimento de numerário. Hospitais e farmácias já não funcionam e os produtos de higiene continuam a ser uma raridade para a população. Há infestações de piolhos, carência de vitaminas e falta de alimentos, “só usamos a casa de banho de três em três dias”. Gaza, agosto de 2025

A maior cidade de Gaza está em caos enquanto se prepara para um ataque israelita iminente

por Mostafa Salem, Ibrahim Dahman, Oren Liebermann e Lou Robinson, CNN

 

A maior cidade de Gaza fervilhava de vida há dois anos. As salas de aula enchiam-se de crianças, os mercados estavam repletos de compradores e os cafés à beira-mar ofereciam descanso a quem procurava escapar ao stress de um enclave sitiado.

A Cidade de Gaza ostenta uma história rica, habitada há milhares de anos e moldada por sucessivas ocupações de civilizações antigas. Serviu como ponto de chegada fundamental para os palestinianos deslocados durante a fundação de Israel em 1948 e conta com centenas de sítios milenares que documentam o seu passado.

Não surpreendeu, portanto, que o grupo militante islâmico Hamas tenha escolhido a Cidade de Gaza como a sua capital de facto quando tomou o controlo da faixa em 2007.

Anos de conflito, um bloqueio asfixiante e o governo autocrático do Hamas tornaram a vida dos palestinianos difícil. Mas as instituições criadas pelos militantes, com ajuda de governos regionais como o Qatar e um sistema robusto de assistência das Nações Unidas, ofereceram alguma estrutura à população exausta da Faixa.

Um consolidado sistema de contrabando subterrâneo deu à Cidade de Gaza um vislumbre do mundo exterior sob o cerco terrestre, aéreo e marítimo imposto pelos vizinhos Israel e Egito – que ambos classificam o Hamas como organização terrorista. Embora a vida estivesse longe de ser fácil na Cidade de Gaza, com metade da população desempregada e a polícia do Hamas a patrulhar rigorosamente as ruas, ainda era possível comprar um matcha latte a caminho de um estúdio de ioga ou relaxar num parque.

Hoje, o que outrora foi o centro cultural e financeiro do enclave jaz em ruínas sem lei, devastado por meses de uma brutal ofensiva israelita desencadeada pelo ataque mortal do Hamas contra Israel, há quase dois anos. E, à medida que Israel prepara uma nova ofensiva na área densamente povoada para eliminar militantes do Hamas escondidos no subsolo, os palestinianos da histórica Cidade de Gaza confrontam-se, mais uma vez, com crescentes receios de sobrevivência.

Vida na Cidade de Gaza

A vida normal no enclave costeiro colapsou após a brutal retaliação de Israel ao ataque do Hamas.

Centenas de milhares de pessoas abrigadas em edifícios destruídos da cidade foram deixadas à sua sorte após a queda do aparelho policial do Hamas. Sem clareza quanto ao futuro, os residentes da Cidade de Gaza aguardam notícias sobre o próximo carregamento de alimentos, ou pelo som súbito de um fio de água salgada a correr pelos canos das casas de banho – que lhes daria uma rara oportunidade de tomar banho.

Israel não permite a entrada de jornalistas em Gaza. A CNN falou com vários residentes da Cidade de Gaza para traçar um retrato de como a cidade se encontra em plena guerra.

Dezenas de milhares de ataques israelitas deixaram as muitas torres da cidade reduzidas a escombros, enquanto lixo e águas residuais inundam as ruas. O fumo negro do plástico e da madeira queimados, usados pelos residentes como combustível, enche os céus e o zumbido constante dos drones israelitas sobrevoa o espaço aéreo, intercalado por explosões esporádicas de bombardeamentos próximos.

Uma teia caótica de fios provenientes de geradores de rua fornece eletricidade a quem pode pagar. Os mercados exibem uma mistura aleatória de alimentos a preços exorbitantes, possivelmente saqueados por gangues criminosos dos poucos camiões de ajuda que Israel permite entrar na Faixa.

Hospitais e farmácias já não funcionam, e os produtos de higiene continuam a ser uma raridade para os palestinianos, que dizem estar enfraquecidos devido a infestações de piolhos, carência de vitaminas e falta de alimentos.

Ao cair da noite, gangues armados percorrem as ruas e famílias pegam em armas para se proteger. O dinheiro pode ser transferido para Gaza através de um sistema bancário informal – mas quem procura levantá-lo é obrigado a pagar até 50% de comissão a indivíduos e grupos que controlam o fornecimento de numerário.

Cães estão “a comer tantos cadáveres”

Majdi Abu Hamdi, 40 anos, pai de quatro filhos, diz que o pó das explosões sufoca as ruas e infiltra-se nas casas ainda de pé, onde as janelas partidas tornam difícil respirar.

Até os cães vadios mudaram de comportamento, conta à CNN. “À noite, ouvimos os cães a uivar. Tornaram-se selvagens de tanto comerem cadáveres. O seu ladrar mudou, tornando-se feroz.”

“São até perigosos para as pessoas, atacam os moradores de forma selvagem. Há dois dias, por engano, um gato passou perto deles. Mais de vinte cães atacaram-no e despedaçaram-no.”

Continua: “As pessoas podem ter 30 anos, mas o cansaço da guerra faz com que pareçam ter 70. A fome e a má alimentação desgastam-nos. Só usamos a casa de banho de três em três dias por falta de comida e pelos preços elevados.”

O Hamas, outrora tão visível nas ruas da Cidade de Gaza, está agora ausente. Os seus escritórios políticos, câmaras municipais e esquadras de polícia estão destruídos e os seus militantes permanecem escondidos.

“Os filhos da mãe não têm controlo, não é como antigamente… mas por vezes aparecem de repente, não se sabe de onde”, diz Abu Mohamed, um residente da Cidade de Gaza opositor do Hamas.

O residente, que não forneceu o nome completo por receio de represálias do Hamas, afirma que o grupo não tem forças visíveis presentes e que os civis não sabem como a organização funciona atualmente.

“Eles não têm locais específicos onde se reúnem. Têm as suas próprias formas de comunicar ou de se organizarem… não sabemos como o fazem”, conta Abu Mohamed sobre o Hamas.

Bashar Taleb, um jornalista da Cidade de Gaza, questiona a utilidade das armas do Hamas se não protegem os palestinianos.

“De que servem as armas se não protegeram um único civil e não evitaram a fome e a morte contínua que dura há quase 700 dias entre civis inocentes que não têm poder nesta guerra?”, escreveu Taleb no Facebook.

“Quero que uma pessoa razoável me responda ou que me dê apenas uma vantagem, uma única vantagem, das armas do Hamas.”

O Hamas não é uma instituição estática

Quando foi alcançado um acordo com Israel para um cessar-fogo e a libertação de alguns reféns em janeiro, membros armados do Hamas reapareceram em massa, envergando uniforme completo numa praça pública da Cidade de Gaza. Foi o lembrete do Hamas de que o grupo ainda estava vivo meses depois de Israel se ter proposto a destruí-lo.

Nas semanas seguintes, o Hamas encenou cerimónias para exibir força durante as libertações programadas de reféns israelitas capturados a 7 de outubro. As cerimónias enfureceram de tal forma Israel que este ameaçou abandonar o acordo.

Num dos vídeos mais recentes a circular nas redes sociais e geolocalizado pela CNN, um grupo armado de homens mascarados entoava cânticos em apoio à ala militar do Hamas – as Brigadas Al Qassam – empunhando armas automáticas. O vídeo, divulgado em agosto, mostrava militantes mascarados a incendiar um veículo e a ameaçar “ladrões e comerciantes” que roubam ajuda humanitária.

Autodenominados “Al Rade’a”, ou “Os Dissuasores”, o subgrupo afirmou, no seu primeiro comunicado, que foi formado pelo aparelho de segurança do Hamas para “dissuadir empresários monopolistas” e gangues que colaboram com Israel em Gaza.

O Al Rade’a afirmou ter executado pessoas pertencentes a gangues colaboradoras de Israel, incluindo seis indivíduos no mês passado, na cidade de Khan Younis, no sul.

“Não nos podemos esquecer de que o Hamas não é uma instituição ou figura estática. Começaram com um certo número de combatentes a 7 de outubro e depois, dada a destruição e as mortes dentro de Gaza, também embarcaram numa campanha de recrutamento e substituíram os que estavam lá”, afirma Alex Plitsas, perito militar e investigador sénior não residente do Atlantic Council, à CNN.

É praticamente impossível estabelecer um retrato preciso do número de militantes do Hamas que permanecem na Cidade de Gaza.

“O Hamas não é uma força uniforme; embora o seu governo tenha sido eleito em Gaza e tenham instituições pelas quais são responsáveis, a sua ala militar não funciona como um exército regular… atuam, na prática, como uma força insurgente de um governo eleito que está em plena guerra e não jogam pelas regras”, diz Plitsas.

“Eles sabem que estamos a chegar”

A tomada e ocupação da maior cidade do norte de Gaza, que Netanyahu disse ser um dos últimos bastiões do Hamas, exigirá que o exército israelita mobilize mais 60 mil reservistas e prolongue o serviço de outros 20 mil, além dos que já foram convocados.

Uma fonte israelita disse esta semana que o exército dará aos palestinianos aproximadamente dois meses para evacuarem a área densamente povoada antes do início da ofensiva, fixando como prazo simbólico o dia 7 de outubro, o segundo aniversário da guerra.


Soldados das IDF preparam tanques a 22 de agosto de 2025 na fronteira de Gaza, Israel foto Elke Scholiers/Getty Images

Outro responsável militar israelita não conseguiu indicar quantas forças do Hamas permanecem na Cidade de Gaza, mas afirmou que as Forças de Defesa de Israel (IDF) não se aventuraram profundamente na área em quase dois anos de guerra.

A expectativa é de que as tropas enfrentem um inimigo que teve tempo para se entrincheirar, utilizando a extensa rede de túneis sob a Cidade de Gaza.

“Eles sabem que estamos a chegar”, disse o responsável, “por isso preparam-se para isso.”

O “metro” do Hamas, como Israel o apelida, é mais do que um sistema uniforme de túneis, explicou o responsável. É muito mais complexo do que as IDF antecipavam, com centros estratégicos maiores e ramificações, bem como pequenos túneis táticos para movimentos rápidos e ataques surpresa.

Uma vez evacuada a Cidade de Gaza, as IDF provavelmente atacarão um conjunto alargado de alvos na densa área urbana, acrescentou o responsável, incluindo locais que anteriormente não foram atingidos devido à densidade da população civil.

Mas a nova operação israelita está a suscitar alertas de governos e organizações humanitárias, que continuam preocupados com a conduta do exército israelita nos últimos dois anos, perante a elevada taxa de vítimas civis, relatos de crimes de guerra, abusos de direitos humanos e bloqueios de ajuda.

“O exército israelita provavelmente demoraria alguns meses a entrar em cada edifício, limpá-lo e atingir todos os túneis. É possível? Sim”, disse Plitsas. “É extremamente difícil e exigirá muitos soldados para limpar e conquistar todo o território? Também sim.”