Por Hamilton Roschel, coordenador do grupo de pesquisa em Fisiologia Aplicada e Nutrição da Escola de Educação Física e Esporte e da Faculdade de Medicina da USP
Se existe um assunto que tomou de assalto as rodas de conversa, as redes sociais e até mesmo as piadas de stand-up nos últimos tempos é a tal da “canetinha milagrosa”. Ozempic, Wegovy, Mounjaro… nomes que, até pouco tempo atrás, eram restritos aos círculos médicos e de pacientes com diabetes tipo 2, hoje são sinônimos de emagrecimento rápido e, para alguns, a promessa de um corpo “perfeito” sem esforço.
A demanda explodiu, a ponto de faltar medicamento para quem realmente precisa para controlar a glicemia. Virou febre, modismo, quase um acessório de status. Mas, como costuma acontecer na ciência e na medicina, a história é bem mais complexa do que o marketing ou o boca-a-boca sugerem. Enquanto a sociedade debate a ética do uso “estético” e os padrões de beleza irreais, a pesquisa científica avança a passos largos, descobrindo que esses medicamentos, conhecidos como agonistas do receptor de GLP-1 (GLP-1 RAs), podem ter efeitos que vão muito além do controle do açúcar no sangue e da perda de peso.
Doenças do fígado, problemas cardiovasculares, talvez até condições neurológicas… a lista de potenciais benefícios parece crescer a cada novo estudo. Seriam eles, então, a panaceia do século 21? Ou estamos diante de mais um ciclo de entusiasmo exagerado, que pode esconder riscos e complexidades ainda não totalmente compreendidos? Vamos tentar separar o joio do trigo (ou a semaglutida da solução simplista).
Entendendo os agonistas GLP-1: mais que emagrecimento
O GLP-1 (peptídeo-1 semelhante ao glucagon) é um hormônio que produzimos naturalmente no intestino após as refeições. Ele tem múltiplas funções: estimula a secreção de insulina pelo pâncreas (ajudando a baixar a glicose no sangue), diminui a produção de glucagon (outro hormônio que aumenta a glicose), retarda o esvaziamento do estômago e aumenta a sensação de saciedade no cérebro. Os medicamentos como a semaglutida (Ozempic/Wegovy), liraglutida (Saxenda/Victoza) e tirzepatida (Mounjaro/Zepbound – que também atua em outro receptor, o GIP) mimetizam ou potencializam a ação desse hormônio natural. Inicialmente desenvolvidos para diabetes tipo 2, seu potente efeito na redução do apetite e na perda de peso levou à investigação do seu uso também para o tratamento da obesidade, com resultados impressionantes, diga-se. Mas a ciência não parou por aí. Pesquisadores começaram a observar outros efeitos desses medicamentos…
O fígado agradece? O potencial contra a gordura hepática
Uma das áreas mais promissoras é o tratamento da doença hepática gordurosa associada à disfunção metabólica (MASLD, antiga NAFLD) e sua forma mais grave e inflamatória, a esteato-hepatite associada à disfunção metabólica (MASH, antiga NASH). Essa condição, intimamente ligada à obesidade e à síndrome metabólica, é caracterizada pelo acúmulo de gordura no fígado, podendo levar à fibrose, cirrose e câncer de fígado. Até recentemente, não havia tratamento medicamentoso aprovado especificamente para MASH.
Estudos recentes, incluindo pesquisas destacadas em publicações como Nature Medicine e apresentadas em congressos médicos, sugerem que a semaglutida pode ser eficaz na resolução da MASH e na melhora da fibrose hepática. Um estudo internacional recente, por exemplo, mostrou que a semaglutida conseguiu reverter danos hepáticos em pacientes com MASH. Os mecanismos exatos ainda estão sendo elucidados, mas provavelmente envolvem a redução da inflamação, do estresse oxidativo e da própria gordura no fígado, além dos efeitos benéficos no controle glicêmico e no peso corporal.
Isso abre uma nova perspectiva terapêutica para milhões de pessoas com doença hepática gordurosa, uma epidemia silenciosa que acompanha a de obesidade e diabetes. Mas, claro, ainda são necessários estudos maiores e de longo prazo para confirmar esses achados e entender completamente o papel desses medicamentos no manejo da MASH.
Outros horizontes
As investigações não param no fígado. Há evidências crescentes de que os GLP-1 RAs oferecem proteção cardiovascular, reduzindo o risco de infarto, AVC e morte cardiovascular em pacientes com diabetes tipo 2 e/ou obesidade. Alguns estudos sugerem até benefícios em relação à função renal e possíveis efeitos neuroprotetores, embora estes últimos ainda sejam bem mais especulativos. Pesquisas recentes publicadas mapearam uma vasta gama de associações, mostrando potenciais benefícios na saúde cognitiva e comportamental, mas também levantando alertas sobre certos riscos envolvendo com o uso dos medicamentos.
A calma necessária: nem tudo é na base da “canetinha”
Diante de tanto potencial, é fácil cair na armadilha do entusiasmo desmedido. No entanto, é crucial manter uma perspectiva crítica em relação ao outro lado da moeda.
Os GLP-1 RAs não são isentos de efeitos adversos. Os mais comuns são os já bem relatados efeitos gastrointestinais (náuseas, vômitos, diarreia, constipação). Embora geralmente manejáveis, podem ser intensos para alguns pacientes. Há também preocupações mais raras, porém sérias, como pancreatite e, em estudos com roedores, tumores de células C da tireoide (cuja relevância para humanos ainda é debatida).
Relatos anedóticos e alguns sinais em bancos de dados de farmacovigilância levantaram preocupações sobre um possível aumento no risco de ideação suicida. Estudos maiores e mais controlados, até o momento, não confirmaram essa associação causal, mas a vigilância continua sendo necessária, especialmente em pacientes com histórico psiquiátrico.
A perda de peso induzida por esses medicamentos não é apenas de gordura, mas também de massa magra, o que pode ser problemático, especialmente em idosos, se não for acompanhada de exercícios de força e ingestão proteica adequada (mais sobre isso em um artigo futuro).
E o que acontece quando se para o uso do medicamento? Na maioria dos casos, o peso perdido é recuperado, pelo menos parcialmente. Isso levanta questões sobre a necessidade de uso crônico (talvez vitalício?) e a sustentabilidade financeira e de saúde a longo prazo.
Questões relacionadas ao acesso e equidade também permeiam o tópico. São medicamentos caros. Quem pode pagar? Seu uso crescente exacerba as desigualdades em saúde? Como garantir o acesso para quem realmente tem indicação médica, como pacientes com diabetes ou obesidade grave com MASH, em detrimento do uso puramente estético?
Resta claro que os GLP-1 RAs não são soluções mágicas. Nenhum medicamento parece ser capaz de substituir, em sua integralidade, a multitude e potência de efeitos de um estilo de vida saudável. Alimentação equilibrada e atividade física continuam sendo pilares fundamentais para a boa saúde. Reduzir a obesidade e suas complicações a uma injeção parece contraproducente frente à complexidade do problema.
Os agonistas do GLP-1 representam, sem dúvida, um avanço farmacológico notável, com um potencial terapêutico que parece se expandir para além de suas indicações originais. A perspectiva de tratar eficazmente a MASH ou reduzir o risco cardiovascular é animadora. Contudo, a euforia midiática e a busca incessante por soluções rápidas para problemas complexos como a obesidade nos cegam para as nuances, os riscos e as questões sociais envolvidas.
Não, o Ozempic (e sua turma) não é a pílula mágica que vai curar todos os males do estilo de vida moderno. É uma ferramenta poderosa, sim, mas que exige conhecimento, critério médico, acompanhamento cuidadoso e, acima de tudo, uma discussão honesta sobre seus benefícios, riscos, custos e o lugar que ocupa (ou deveria ocupar) na nossa sociedade obcecada pela magreza e pela gratificação instantânea. Assim, políticas focadas em construir ambientes que promovam, de fato, saúde e bem-estar para todos, com ou sem canetinha, são imperativas.
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