Os temidos dentes de tubarão “são criados para cortar carne, não para resistir à acidez”, resume o comunicado sobre o estudo, publicado esta quarta-feira na revista Frontiers in Marine Science, que concluiu que os “mortíferos” dentes de tubarão podem não resistir aos efeitos da acidificação dos oceanos – que está a aumentar, devido à concentração cada vez maior na água do mar do principal gás com efeito de estufa, o dióxido de carbono (CO2).
A equipa de cientistas recolheu mais de 600 dentes descartados de um aquário que abrigava tubarões e submeteu-os a testes para observar o efeito do previsível aumento da acidificação do oceano. Os dentes expostos a água mais ácida, porque tem maiores quantidades de CO2 emitido pela actividade humana, ficaram significativamente mais danificados. Em tecido vivo e com o aumento da acidificação os danos podem ser muito mais graves, avisam.
“Os dentes de tubarão, apesar de serem compostos por fosfatos altamente mineralizados, são vulneráveis à corrosão em cenários futuros de acidificação dos oceanos”, refere o primeiro autor do artigo da Frontiers in Marine Science, Maximilian Baum, biólogo da Universidade Heinrich Heine de Düsseldorf (HHU), na Alemanha, citado na nota de imprensa sobre o estudo. “São armas altamente desenvolvidas, feitas para cortar carne, não para resistir à acidez do oceano. Os nossos resultados mostram o quão vulneráveis podem ser até mesmo as armas mais afiadas da natureza.”
Em resposta ao Azul por e-mail, Baum adianta que foram realizadas experiências com dentes de tubarão-de-pontas-negras-do-recife que caíram, naturalmente. “Descobrimos que os dentes expostos a valores mais baixos de pH apresentavam danos mais visíveis, como fissuras, corrosão das raízes e alterações na estrutura da superfície”, resume. Isso indica que a acidificação dos oceanos pode afectar não apenas os corais ou conchas, mas também as ferramentas dos principais predadores, acrescenta o investigador.
No artigo, os autores lembram que a alteração dos factores ecológicos representa um desafio para muitos organismos. “As mudanças globais e as alterações ambientais associadas têm um impacto significativo nos organismos marinhos e ameaçam a biodiversidade dos ecossistemas marinhos. Estudos experimentais anteriores demonstraram que a acidificação dos oceanos causada pela libertação antropogénica de CO2 [dióxido de carbono] na atmosfera e a subsequente dissolução na água do mar terá um impacto significativo em vários organismos marinhos”, escrevem.
Um oceano dez vezes mais ácido
Nesta investigação, os cientistas investigaram “os efeitos corrosivos da acidificação na morfologia de dentes de tubarão isolados numa incubação de oito semanas a um pH de 7,3, o pH esperado da água do mar no ano 2300”. O pH da água dos oceanos era de 8,2 na era pré-industrial (o que o tornava alcalino). Mas, actualmente, terá já diminuído para cerca de 8,1, devido à absorção do CO₂ em excesso na atmosfera, que é o processo através do qual está a acontecer a acidificação dos oceanos. Essa diminuição do pH pode parecer insignificante, mas representa um aumento de aproximadamente 30% na acidez e ameaça a vida marinha.
Em 2300, espera-se que caia para 7,3, tornando o oceano quase dez vezes mais ácido do que é actualmente. Nessa altura, o oceano ainda é alcalino, mas estará muito próximo de tornar-se um ácido – o que acontece com valor de pH abaixo de 7.
“Os tubarões são famosos por substituírem os seus dentes, com novos dentes a crescerem sempre que os actuais se desgastam. Como os tubarões dependem dos dentes para capturar presas, são vitais para a sobrevivência de um dos principais predadores dos oceanos”, contextualiza o comunicado de imprensa sobre o estudo.
Ao Azul, Baum esclarece, no entanto, que “embora os tubarões possam substituir os seus dentes, os custos energéticos de fazê-lo em condições cada vez mais ácidas podem tornar-se uma verdadeira desvantagem”. “Isto mostra como os impactos humanos nos oceanos podem ser complexos e multifacetados.”
Assim, avisam os cientistas, estas poderosas ferramentas podem não resistir às pressões de um mundo em aquecimento e, segundo este trabalho, a acidificação dos oceanos em específico pode tornar os dentes dos tubarões mais frágeis e fracos.
Tubarão-de-pontas-negras-do-recife no aquário onde foram recolhidos os dentes utilizados no estudo
Max Baum
No estudo, os investigadores recolheram mais de 600 dentes descartados de um aquário que abriga tubarões. E notam: “16 dentes – aqueles que estavam completamente intactos e sem danos – foram utilizados para a experiência de pH, enquanto outros 36 dentes foram utilizados para medir a circunferência antes e depois”. Os dentes foram incubados durante oito semanas em tanques separados de 20 litros, com uma parte submersa em águas com pH de 8,1 e outra em pH de 7,3.
Em comparação com os dentes incubados a um pH de 8,1, os dentes expostos a água mais ácida ficaram significativamente mais danificados. “Observámos danos visíveis na superfície, como rachaduras e buracos, aumento da corrosão da raiz e degradação estrutural”, descreve Sebastian Fraune, que dirige o Instituto de Zoologia e Interacções Orgânicas da HHU, citado no comunicado.
Dentes pareciam maiores, mas ficaram mais fracos
Houve outras alterações. “A circunferência dos dentes era maior em níveis mais elevados de pH. No entanto, os dentes não cresceram realmente. A estrutura da superfície tornou-se mais irregular, fazendo com que parecessem maiores nas imagens 2D”, relata o artigo, sublinhando que, “embora uma superfície dentária alterada possa melhorar a eficiência de corte, também pode tornar os dentes estruturalmente mais fracos e mais propensos a partir”.
Os cientistas reconhecem, no entanto, uma limitação óbvia do seu estudo. O trabalho analisou apenas dentes descartados de tecido mineralizado não vivo. O que poderá acontecer em organismos vivos? Será que pode existir algum tipo de adaptação que desencadeie processos de reparação destes danos?
Sebastian Fraune arrisca uma resposta: “Em tubarões vivos, a situação pode ser mais complexa. Potencialmente, os dentes poderiam ser remineralizados, ou então os que estivessem danificados podiam ser substituídos mais rapidamente. Mas os custos energéticos disso seriam provavelmente mais elevados em águas acidificadas”.
“Os próximos passos da nossa investigação serão examinar estes processos em tubarões vivos, em vez de apenas com dentes perdidos. Isto irá ajudar-nos a compreender se como é que os tubarões podem compensar os danos. Também queremos investigar como são afectadas diferentes espécies, que têm diferentes taxas de substituição dentária”, acrescenta ao Azul Maximilian Baum.
Os dentes de tubarão, apesar de serem compostos por fosfatos altamente mineralizados, são vulneráveis à corrosão em cenários futuros de acidificação dos oceanos.
Maximilian Baum, biólogo da Universidade Heinrich Heine de Düsseldorf (HHU), na Alemanha
Os tubarões-de-pontas-negras-do-recife (Carcharhinus melanopterus), que serviram para este estudo precisam de nadar com a boca permanentemente aberta para respirarem, o que significa que os dentes estão constantemente expostos à água. “Se for muito ácida, os dentes sofrem danos automaticamente, especialmente se a acidificação se intensificar”, prevêem os cientistas.
Os tubarões-de-pontas-negras-do-recife são frequentemente mantidos em aquários de exposição, sob condições controladas. Por isso foi utilizado neste estudo. Estas condições facilitam muito a amostragem minimamente invasiva para investigação in situ, justificam os autores no artigo.
Efeitos corrosivos
“Os dentes desta espécie de tubarão são ortodônticos, apresentam forte serrilha na mandíbula superior”, descrevem. Usando microscopia electrónica, foi possível observar “os efeitos corrosivos da acidificação nas diferentes estruturas dentárias, tais como a raiz, as serrilhas primárias e secundárias e a coroa dos dentes do tubarão-de-ponta-negra”.
Um tubarão-de-pontas-negras-do-recife (Carcharhinus amblyrhynchos)
Stephen Frink/GettyImages
“Os nossos resultados mostram que a acidificação dos oceanos terá efeitos significativos nas propriedades morfológicas dos dentes, incluindo corrosão visível na coroa, degradação das estruturas radiculares e perda de detalhes finos da serrilha em condições de baixo pH. Isto poderá levar a alterações na eficiência da procura de alimento, na absorção de energia e, em última análise, na aptidão física dos elasmobrânquios [uma subclasse de peixes cartilagíneos] nos oceanos do futuro”, escrevem os cientistas.
Maximilian Baum dá mais detalhes sobre o previsível efeito negativo: “Mesmo quedas moderadas no pH podem afectar espécies mais sensíveis, com ciclos lentos de replicação dentária, ou ter impactos cumulativos ao longo do tempo”.
Solução? Reduzir emissões de CO2
Como evitar este cenário? A resposta é simples: “Manter o pH do oceano próximo da média actual de 8,1 pode ser fundamental para a integridade física das ferramentas dos predadores.”
Solução? “Abordar este problema significa, em primeiro lugar, combater a causa principal, que é o aumento contínuo das emissões de CO2 e a consequente acidificação dos oceanos”, responde Baum ao Azul.
“Ao mesmo tempo, é necessário haver uma maior consciencialização de que as alterações climáticas afectam até as estruturas mais pequenas da vida marinha. Reduzir as emissões e apoiar a conservação marinha são, portanto, passos essenciais se quisermos proteger os ecossistemas, desde os corais aos tubarões”, frisou o cientista.
Apesar de tudo o que ficou de fora desta investigação, e de não terem sido testados os efeitos da acidificação em tecidos vivos, os autores destacam que o trabalho mostra que “danos microscópicos podem ser suficientes para representar um problema sério para animais que dependem dos dentes para sobreviver”.
“É um lembrete de que as alterações climáticas têm um impacto em cadeia em toda a cadeia alimentar e ecossistemas”, concluiu Maximilian Baum.