Uma das definições de Italo Calvino para clássico é aquele livro que nunca se está lendo, mas relendo. E quanto às obras que sumiram das prateleiras junto aos seus autores e não tiveram a oportunidade de ser relidas à exaustão?

É o caso da obra de Ann Quin, que vem sendo redescoberta e revisitada nos últimos anos. A autora britânica era inédita no Brasil até a DBA lançar “Berg”, primeiro livro dela, que acaba de sair com tradução de Gisele Eberspächer.

“Um homem chamado Berg, que mudou seu nome para Greb, veio para uma cidade do litoral com a intenção de matar seu pai.”

Esse trecho não é um spoiler nem uma sinopse —é, literalmente, a única sentença do capítulo de abertura do romance, uma promessa de Quin para o que será explorado nas 183 páginas seguintes.

Em uma subversão ácida e melancólica do mito de Édipo, o protagonista espera o momento mais oportuno para dar cabo do seu progenitor. O pai, um artista de vaudeville envelhecido e decadente que mora com a amante Judith em uma pensão, contrasta com a imagem idealizada que Berg construiu ao longo da vida.

Essa dualidade entre a realidade e a idealização se reflete na obra de Quin, que convida a explorar a complexa relação entre o abandono, a busca pela própria identidade e sexualidade e a influência do passado no presente.

A ausência do pai segue como motivação principal, enquanto a figura da mãe, Edith, contamina parte da história em inserções entre os pensamentos do personagem e a narrativa. O relacionamento de Berg com a mãe é ambivalente: memórias de infância e adolescência marcadas por intimidade, desconforto e por vezes violência invadem momentos-chave.

O protagonista se lembra, por exemplo, de quando a mãe o puniu com uma tira de couro e pensa como ela encontrava prazer nisso, uma experiência que Berg compartilhava ao não chorar. A ambiguidade desse contato é reforçada pela linguagem, que mistura repulsa e atração.

Tudo a Ler

A jornada existencial de Berg é pontuada por uma estética de detalhes pegajosos, que traduzem a precariedade de sua condição. Objetos quebrados, roupas manchadas e o ambiente sujo comunicam a pobreza de seu entorno, a instabilidade de seu mundo psicológico e a vulnerabilidade de sua identidade.

Carregada de estilo experimental influenciado por autores como Virginia Woolf e Samuel Beckett, Quin se recusa a dar um desfecho óbvio, mantendo a incerteza e a confusão que refletem o estado interno do protagonista.

Longe da tragédia linear, o mergulho na psique fragmentada de Berg, aponta para uma crise de identidade de conclusão impossível. A autora desafia a noção de que um ato definidor poderia resolver a crise edipiana do protagonista, subvertendo a narrativa clássica e demonstrando o caráter ousado, elegante e vertiginoso de sua prosa.

É por isso que “Berg”, e a obra de Ann Quin como um todo, faz com que rememoremos as definições de Calvino sobre a imortalidade dos clássicos.

Com uma vida breve —morreu em 1973, aos 37 anos— e uma carreira marcada por recepção crítica mista, a escritora teve seus livros relegados à obscuridade por um bom tempo. Mas sua prosa experimental, arriscada, sempre em busca de novas possibilidades de expressão, continua a soar atual.

A redescoberta de Quin é um presente para a literatura contemporânea, pois oferece a oportunidade de “reler” pela primeira vez uma voz única, que se recusou a ser domesticada e que, mesmo após décadas, ressoa de forma poderosa e desafiadora para os leitores de hoje.

Sua obra prova que a verdadeira vanguarda, mesmo que marginalizada em seu tempo, tem o poder de ressurgir e influenciar o futuro.