Você nasceu aqui em Lisboa, mas cresceu no Brasil e agora mora aqui. Como é a sua relação com Portugal?
Eu nasci aqui durante o exílio dos meus pais, o que é muito diferente de nascer aqui filha de portugueses. Meus pais eram brasileiros, estavam exilados durante a ditadura militar. E eu nasci em janeiro de 79 e fui pro Brasil em setembro de 79, não tenho nenhuma memória desses primeiros nove meses aqui. Mas, ao mesmo tempo, acho que o fato de eu ter nascido aqui sempre significou alguma coisa pra mim, Eu sempre disse isso. Eu sempre disse que eu era brasileira, mas que também era portuguesa. Porque também eu nasci numa época em que valia a lei do solo, bastava nascer aqui que era considerado portuguesa e, de alguma forma, sempre me senti portuguesa. Eu fiquei muitos anos sem vir pra cá, depois comecei a frequentar quando comecei a publicar o que eu escrevia. A Chave de Casa, que é o meu primeiro romance, saiu primeiro em Portugal e depois no Brasil. Uma coincidência, na verdade, uma questão de agenda das editoras, mas bem simbólico também. Por conta disso comecei a frequentar eventos literários aqui, quando conheci o pai dos meus filhos. Foi, na verdade, por isso que eu vim pra cá. Ele tinha uma filha de sete anos, ele não podia ir pro Brasil. Pra mim era muito fácil ir pra cá, por ser portuguesa, pelo meu trabalho, porque eu gostava da ideia, porque eu gostava de Portugal. E, na verdade, eu vim pra fazer experiências, ficar uns meses e fiquei. Isso foi em março de 2013.
Entre Brasil e Portugal, quais são as principais diferenças que você vê do modo de vida?
Impossível não falar da questão da segurança, né? Eu sei que é bastante clichê e óbvio, mas essa certa liberdade do ir e vir é muito importante. Aqui eu me sinto muito tranquila no ir e vir. E com crianças, é um ponto muito positivo. Por outro lado, eu acho que o Brasil é um país em termos criativos e de pensamento, mais livre do que Portugal. Então, Portugal é mais livre na questão da circulação do corpo e o outro é mais livre em termos de criatividade, de imaginação, de ideias. Eu sinto uma certa falta dos meus filhos estarem nessa cultura brasileira, que é mais é mais misturada e criativa. Aqui é sempre uma educação mais formal, menos solta. Mas, ao mesmo tempo, tem toda essa questão da segurança. E, claro que, de um tempo pra cá, acho que do Bolsonaro pra cá, foram vindo muito mais brasileiros. Então, a escola dos meus filhos tem muitos brasileiros. Eu tenho muitos amigos brasileiros e, fora da escola, eles convivem meio a meio. Metade português e metade brasileiro, eles também têm essa experiência do Brasil aqui. E depois é uma escolha das coisas que você faz, assim, né? Eu escolhi uma escola que tem uma metodologia que não é essa metodologia tradicional, careta, é uma IPSS. E claro, eu vou pro Brasil todos os anos com as crianças, eles têm essa experiência também e faço questão que continuem com essa ligação com o Brasil.
Nos seus livros você escreve muito sobre os sentimentos de nós mulheres. Sobre ser mulher, aqui e no Brasil, vê diferenças?
Eu volto à questão da liberdade de circulação. Mesmo na questão das roupas, me sinto mais livre aqui. Por exemplo, fazer topless na praia pra mim é uma liberdade fundamental que no Brasil não dá. E poder usar roupa sem ficar achando, ai, vão cair em cima de mim na rua. É um pouco isso, essa liberdade. Mas eu também acho que tem uma questão, eu sou do Rio de Janeiro. E o Rio tem aquela exigência em relação ao corpo também. Eu acho que envelhecer aqui é melhor do que envelhecer no Brasil, pela cobrança estética. Acho que a cobrança estética no Brasil é muito pior do que aqui. Eu gosto disso, de poder frequentar menos dermatologistas do que eu frequentaria aqui no Brasil (risos). Agora, a questão do machismo, não tem o que fazer, não temos como fugir disso, tem nos dois países.
O livro A Chave de Casa, que acaba de ser relançado em Portugal pela Penguim, passa por Rio de Janeiro, Lisboa e Istambul. É também um pouco sobre a vida de imigrante, como os seus pais também foram, apesar de exilados. Para você, o que é ser imigrante?
Exilado é diferente de imigrante, porque tem uma coisa, assim, de tempo horário, não é uma escolha. O exilado político não escolhe, está sempre numa situação meio de limbo, numa coisa circunstancial, esperando a hora de voltar. E eu não vim pra cá esperando a hora de voltar. Eu vim pra cá porque eu quis e pra ver no que ia dar. Mas definir o que é ser imigrante é muito difícil. Acho que o imigrante não se sente em casa, que nunca se sente verdadeiramente em casa. Hoje em dia Portugal é minha casa, mas sempre tem um estranhamento. Inclusive, hoje em dia, certamente eu sou mais portuguesa, culturalmente falando, do que eu era antes de morar aqui. Antes, eu costumava dizer que eu era brasileira e portuguesa. Só que morando aqui, quando eu começo a falar, a primeira coisa que eu tô dizendo é ‘Olá, eu sou brasileira’ e depois, o que eu realmente quero dizer, porque o meu sotaque me denuncia. Então, mesmo que quem esteja ouvindo não esteja pensando nisso, eu tô sempre pensando que o outro tá pensando ‘Ah, olha, uma brasileira’. E isso pra mim é um desconforto, sabe? O fato de o tempo todo ser reconhecida por de onde eu vim. É um desconforto no sentido de que faz com que eu não me sinta totalmente em casa, porque eu estou sendo sempre lembrada de onde eu vim, que eu não sou daqui. Ao mesmo tempo, eu me autorizo por estar aqui há muito tempo e por ser portuguesa de nacionalidade desde que nasci, a falar de Portugal com a autoridade de uma portuguesa e de brasileira, imigrante, porque eu me dou esse lugar. Mesmo que queiram tirar esse lugar de mim, eu me dou esse lugar. Eu gosto desse lugar. Até porque tenho dois filhos que nasceram aqui. Trabalho aqui.