Em junho de 2014, Han Kang teve um sonho. Andava por uma planície cheia de neve, em meio a toras de árvores sem folhas. Atrás de cada uma, havia um túmulo. Então a água do mar começou a subir de repente, inundando seus pés, ameaçando as tumbas, afogando os mortos. Ela acordou.

A escritora coreana, que 10 anos depois viria a ganhar o prêmio Nobel de Literatura, sentiu que ali havia a semente de um livro. Anotou o sonho em duas páginas. Escreveu mais algumas, jogou fora. Começou de novo, chegou a 50 páginas, mas tudo foi para o lixo.

Só anos depois, quando a autora viajou para a ilha de Jeju – palco de um massacre de trabalhadores que se levantavam contra o governo da Coreia do Sul no fim da década de 1940, no qual ao menos 30 mil vidas foram ceifadas –, Han entendeu o que viu enquanto dormia.

“O trauma coletivo daquela ilha foi infundido em mim”, conta a discreta autora de 54 anos. “De repente, percebi que meu sonho estava conectado com aquilo. Então consegui escrever.”

A inspiração virou “Sem despedidas”, sua obra mais recente, que saiu em 2021 e chega agora com tradução direta de Natália T. M. Okabayashi por sua casa brasileira, a Todavia.

A protagonista do romance – Kyung-ha, que tem a mesma visão da autora durante o sono – recebe de uma amiga hospitalizada, Inseon, a incumbência de cuidar de seu pássaro, que havia ficado sem ninguém na casa vazia dela em Jeju.

Trama sobre viagem

Após uma viagem tortuosa, a moça chega a uma casa tão impregnada de mistério quanto de memória – a mãe de Inseon foi testemunha da matança de rebeldes promovida pelo governo de direita logo antes da Guerra da Coreia. A estimativa é que cerca de um décimo da população da ilha tenha sido dizimada, incluindo familiares das mulheres fictícias do livro.

Numa história que borra cada vez mais fronteiras entre vida e morte, passado e presente, se desenrola a saga das personagens para descobrir o que houve com seus parentes. Ou melhor, com suas ossadas. “Confundo intencionalmente quem está morto e quem está vivo”, diz a escritora. “Isso não importa. O mais importante é que estão todas conectadas.”

O bastidor de como nasceu “Sem despedidas” ilustra bem o processo criativo da primeira autora coreana a ganhar o maior prêmio da literatura mundial. No discurso de aceite, em dezembro, Han afirmou que gosta de escrever romances porque ali pode “permanecer o tempo necessário para fazer perguntas importantes e urgentes”. Tudo bem se levar um, dois, sete anos.

“Toda vez que escrevo um romance, enfrento essas perguntas e vivo dentro delas. Quando chego ao fim das questões – não quando encontro suas respostas –, concluo o livro.”

Atitude de paciência

É uma atitude de paciência e consideração típica de Han Kang – quando o Nobel foi anunciado, em outubro, não quis dar a tradicional entrevista coletiva à imprensa porque precisava de tempo para pensar o que o prêmio significava para ela. “Teria apenas alguns dias, e era rápido demais para mim”, diz ela agora.

Quando fala sobre “Sem despedidas”, Han retorna com frequência a “Atos humanos”, livro publicado logo antes de ela ter aquele sonho de árvores e túmulos, demonstrando o processo orgânico que estrutura seu projeto literário.

Naquele romance, ela escreveu sobre outro episódio brutal, em 1980, quando o ditador Chun Doo-hwan mandou o Exército reprimir manifestantes pró-democracia na cidade de Gwangju, vitimando centenas de pessoas – principalmente jovens estudantes.

Han nasceu naquele lugar e, mesmo tendo se mudado ainda criança, afirma ter crescido com o imaginário do massacre. Estava “sempre às franjas dos meus pesadelos”, diz. “Eu não achei que ia escrever um livro sobre Gwangju, porque sempre estive focada no interior das pessoas. Mas a vida é assim.”

Significado de “A vegetariana”

A autora era mais conhecida por “A vegetariana”, obra que venceu o prêmio Booker Internacional contando a espiral insana que toma a vida de uma mulher quando ela decide parar de comer carne. Mas a definição de Han para o livro é melhor. “É sobre uma mulher que recusa a violência de uma maneira perfeccionista. Até chegar a um estado que é irreconciliável com o mundo.”

A dificuldade de comer aparece nos outros romances, sempre como um desconforto existencial que se manifesta em engulhos físicos. “Minhas personagens não conciliam nem concedem fácil ao mundo. É seu jeito de lutar”, diz.

Han acabou celebrada como uma escritora de pendor político. Durante o governo da conservadora Park Geun-hye, de 2013 a 2017, sua obra foi incluída numa lista de autores vetados, que não podiam receber recursos públicos. “Quando terminei o livro, podia esperar reação das pessoas à direita. Elas não falavam a verdade sobre o massacre. Com certeza não iam gostar. E conforme a recepção do livro aumentou, a direita começou a me atacar mais.”

Mas há o outro lado. Nos protestos no começo deste ano contra a lei marcial que o então presidente Yoon Suk Yeol tentou impor ao país – ele depois sofreu impeachment, em abril –, Han conta que viu pessoas levando seus livros às manifestações. “Eram pessoas que levantavam sua voz contra a violência, contra voltar ao passado. Uma mulher envolveu ‘Atos humanos’ em luzinhas brilhantes de Natal. Fiquei comovida.”

“SEM DESPEDIDAS”
• De Han Kang
• Tradução Natália T. M. Okabayashi
• Editora Todavia
• 272 págs.
• Preço R$ 84,90 ; R$ 59,90 (ebook)