Mariana Mortágua acredita que o Governo tem a “obrigação legal e moral” de ajudar a flotilha em que vai partir este domingo cumprir o objetivo de chegar a Gaza, mas o Executivo discorda. A dois dias da partida do navio, cuja tripulação também incluirá celebridades e políticos estrangeiros, o ministério dos Negócios Estrangeiros lembra que, à luz do direito internacional, não existe uma “responsabilidade jurídica” do Estado português nesse sentido, até porque a iniciativa é autónoma e não tem “qualquer vínculo” ao Estado.

Numa resposta enviada ao Observador, e questionado sobre a proteção que a deputada e líder bloquista tem exigido — até porque acredita que a inclusão de políticos eleitos pode aumentar a proteção diplomática concedida à embarcação –, o ministério de Paulo Rangel é claro: “A participação na Global Sumud Flotilha consubstancia uma iniciativa autónoma da sociedade civil, que não tem qualquer vínculo ou vinculação ao Estado português”.

Assim, prossegue a mesma resposta, “importa lembrar que à luz do direito internacional, não existe uma responsabilidade jurídica por parte do Estado português de proteção do navio ou dos seus tripulantes”.

Outra coisa, lê-se nesta resposta, é a proteção consular: essa é “assegurada, se necessária, a todos os cidadãos portugueses no estrangeiro”. E essa proteção pode ser necessária caso o cenário seja, para estes tripulantes, semelhante ao que aconteceu em junho, quando a flotilha que também transportava Greta Thunberg, ao lado de outros ativistas, foi intercetada pelas autoridades israelitas quando chegava a Gaza: foram desviados para território israelita e detidos ou deportados (imediatamente, no caso dos que concordaram sê-lo voluntariamente).

O decreto que estabelece o regulamento consular indica que a proteção consultar, quando se “verifique necessária e seja possível”, é exercida de várias formas: desde logo, na prestação de apoio a pessoas “detidas ou presas”; também na prestação de socorros, apoio para pessoas que se encontrem “em risco, de modo a garantir o seu bem-estar e segurança”; ou no acompanhamento de processos de expulsão ou deportação, “prestando o aconselhamento necessário, garantindo a defesa dos direitos dos cidadãos nacionais e promovendo o acolhimento à chegada quando solicitado”.

No caso de detenção e prisão, prevê-se que “os postos e secções consulares prestam apoio a pessoas de nacionalidade portuguesa detidas ou presas no estrangeiro, conformando a sua atuação à estrita observância do princípio da não ingerência na administração da justiça do Estado recetor”, contactando as autoridades locais para obter informações ou procurando que tenham o “tratamento adequado” dessas autoridades.

Esse apoio pode também ser concretizado através de “assistência à navegação marítima e aeronáutica civil“, prevendo o artigo 38º que esse apoio seja prestado a embarcações “nacionais”. Mas, como frisa o Executivo, este não é o caso da flotilha humanitária, uma vez que esta não tem nenhum “vínculo” ao Estado português.

Mariana Mortágua defendeu na terça-feira, depois de se saber que iria até Gaza como parte desta missão humanitária, que o Executivo tem a obrigação legal e moral de usar “todos os instrumentos” para garantir que a Flotilha Humanitária “chega a Gaza em segurança e consegue entregar ajuda humanitária” na Palestina. Numa conferência de imprensa, explicou que os três participantes portugueses — a própria, a atriz Sofia Aparício e o ativista Miguel Duarte — enviaram uma carta ao Ministério dos Negócios Estrangeiros em que explicavam as “informações essenciais” sobre esta missão, defendendo que Portugal deve garantir a segurança de quem a integra e permitir que fure o cerco israelita.

Além disso, defendia a coordenadora do Bloco de Esquerda, o facto de embarcarem nesta missão deputados e eurodeputados de vários países deveria significar que “mais difícil será ao Governo israelita contra-atacar ou bloquear a passagem destes barcos”, como aconteceu com a Flotilha da Liberdade, que transportava Greta Thunberg e outros ativistas. Por isso, disse que na decisão de integrar a missão pesou o facto de ser deputado e gozar de uma “proteção diplomática” que pode ser “útil”.

na rádio Observador, o dirigente Fabian Figueiredo justificou que Mortágua quer “mobilizar a força do mandato, a imunidade parlamentar, para proteger a flotilha”, lembrando que várias embarcações que queriam chegar a Gaza foram ao longo do anos “capturadas ilegalmente em águas internacionais” pelo exército israelita, tendo a tripulação sido “raptada para Israel e detida — há vários relatos de tortura”.

O bloquista argumentava assim que elementos de órgãos de soberania dos Estados devem ter essa proteção garantida: “Há a expectativa, mais do que legítima, de que o Estado português garanta que o Estado de Israel não desvia a embarcação e deixa chegar a missão humanitária a Gaza. Essa mesma expectativa existe nas outras embarcações”. O MNE, dizia, já conhece o trajeto e saberá “a cada momento” do paradeiro do barco — “e deve dizer ao Estado de Israel que não aceita e que deverá atuar caso seja ilegalmente desviado. (…) Os Países Baixos têm sancionado ministros pelos seus apelos e participação em decisões que levam à propagação de crimes de guerra. O Estado português deve fazer exatamente o mesmo, e esperemos que o MNE já tenha sinalizado ao embaixador de Israel que não aceita que sejam tomadas decisões ilegais de desvio”, defendia.

Esta semana, Paulo Rangel classificou a iniciativa como “louvável” mas disse, a partir da Universidade de Verão do PSD, que a posição do Bloco é populista: “O PCP e o Bloco de Esquerda estiveram seis anos influência determinante sobre o PS e não fizeram nada. Ninguém fez mais pela causa dos dois Estados que este Governo”, defendeu, considerando injusto que esses partidos classifiquem agora o Executivo como um “cúmplice de genocídio” quando o Governo está a ponderar reconhecer o Estado palestiniano em setembro, numa Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque.

A flotilha parte este domingo de Barcelona e vai empreender uma viagem que durará cerca de duas semanas, levando a bordo uma delegação composta por representantes de 44 países. São várias embarcações onde estará a delegação portuguesa, mas também nomes como os de Greta Thunberg e dos atores Mark Ruffalo ou Susan Sarandon, que têm defendido a causa palestiniana.

A Flotilha Global Sumud explica no seu site que é uma frota “coordenada, não violenta e composta por pequenas embarcações” que pretendem “quebrar a ocupação ilegal e o cerco em Gaza”. Define-se como sendo “uma coligação diversa de participantes internacionais” e diz que “cada barco representa a comunidade e a recusa de ficar calado frente ao genocídio”, tendo por objetivo levar ajuda humanitária (alimentar e médica) à Faixa de Gaza e sensibilizar a comunidade internacional para a causa.

Esta será, segundo os participantes, a maior flotilha e, nas palavras de Thunberg, a “a maior tentativa de quebrar o cerco ilegal de Israel sobre Gaza”. Em junho, a flotilha anterior tentou chegar a Gaza mas foi desviada antes pelas autoridades israelitas antes de cumprir o objetivo. De seguida, o Governo israelita anunciou que começaria a deportar os ativistas, tendo Thunberg sido uma das participantes que aceitaram voluntariamente ser deportadas para o país de origem (neste caso, a Suécia). Os Executivos desses países acompanharam as deportações.

Outros ativistas recusaram assinar as ordens de deportação, tendo ficado detidos e sido levados às autoridades israelitas para que a deportação fosse autorizada e forçada. O Executivo de Benjamin Netanyahu já se tinha referido à iniciativa como um “iate para selfies” e classificado os ativistas como “porta-vozes da propaganda do Hamas”.

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