Marcelo Rebelo de Sousa chamou “ativo russo” a Donald Trump. Má escolha de palavras? Nos últimos anos, vários ex-agentes do KGB têm feito, sem apresentar provas, alegações sobre a ligação de Trump a Moscovo.

As declarações do Presidente da República sobre o favorecimento que Donald Trump tem dado à Rússia têm sido noticiadas lá fora, com destaque para meios ucranianos em inglês, apesar de nenhum grande meio estrangeiro ou agência noticiosa global ter pegado no tema.

“Com uma coisa peculiar e complexa: é que o líder máximo da maior superpotência do mundo, objetivamente, é um ativo soviético, ou russo. Funciona como ativo. Estou a dizer que, em termos objetivos, a nova liderança norte-americana tem favorecido estrategicamente a Federação Russa”, disse Marcelo Rebelo de Sousa esta semana.

Má escolha de palavras do Presidente? É que a palavra “ativo” é usada no mundo da inteligência para descrever alguém que trabalha para um serviço secreto (quer seja obrigado (devido a chantagem) ou em troca de dinheiro, por exemplo) a recolher informação classificada para um país estrangeiro, ou alguém numa posição de poder que tente influenciar decisões ou que garanta que certos interesses não são afetados.

De há alguns anos a esta parte, várias teorias têm sido noticiadas sobre um alegado envolvimento de Donald Trump com a Rússia e os serviços secretos russos. O atual presidente americano sempre rejeitou qualquer envolvimento com a Rússia.

Este ano, o ex-líder dos serviços de inteligência do Cazaquistão disse que Donald Trump foi recrutado pelo KGB em 1987 quando o então empresário do imobiliário, com 40 anos, visitou Moscovo e que teria o nome de código ‘Krasnov’. Alnur Mussayev disse que Vladimir Putin tem em sua posse o ficheiro de Trump ao serviço do KGB, mas a alegação foi feita sem a apresentação de provas, de acordo com a “Euronews”.

Já Sergei Zhyrnov – ex-agente do KGB que vive em França – alegou que Trump vivia rodeado de operacionais do KGB durante 24 horas por dia durante a sua visita a Moscovo, do condutor do táxi à empregada de limpeza do hotel.

O responsável também sugeriu que Trump pode ter caído numa armadilha sexual, uma tática conhecida por “kompromat” (ler mais abaixo), pois todas as prostitutas de alto nível trabalhavam com o KGB. Outra hipótese, é ter sido apanhado a subornar responsáveis de Moscovo, pois tinha a ideia de construir um hotel na capital soviética, segundo o “The Hill”.

Há um terceiro ex-agente do KGB a alegar o envolvimento de Trump com os serviços secretos russos.

Yuri Shvets esteve colocado em Washington na década de 80 e compara o presidente dos EUA aos ‘cinco de Cambridge’ os estudantes universitários que foram recrutados pela URSS durante os seus estudos e que entraram depois nos serviços secretos russos e alimentaram-nos com informação classificada durante a segunda guerra mundial e a fase inicial da guerra fria.

O mais conhecido deste quinteto é Kim Philby, que acabou por desertar para a URSS e morrer exilado. O escritor britânico Bem MacIntyre tem um livro dedicado à história verídica deste duplo espião: “Um espião entre amigos – Kim Philby e a grande traição”.

Yuri Shvets foi uma das fontes principais do jornalista Craig Unger para escrever o livro American Krompromat: “Como o KGB cultivou Donald Trump”.

“Este é um exemplo onde pessoas foram recrutadas quando eram apenas estudantes e atingiram posições importantes: algo assim estava a acontecer com Trump”, afirmou em 2021, em entrevista ao “Guardian”.

Segundo o ex-espião que vive nos EUA desde 1993, Donald Trump apareceu no radar dos russos em 1977 quando casou com a sua primeira mulher: Ivana Zelnickova, uma modelo checa.

A partir daqui,o empresário começou a ser espiado pelos serviços secretos da Checoslováquia (StB) em cooperação com o KGB.

Foi em 1980 que o Trump abriu o seu primeiro grande projeto – o Grand Hyatt New York Hotel – perto da estação Grand Central em Nova Iorque.

Para o hotel comprou 200 televisões à empresa de Semyon Kislin, um imigrante soviético controlado pelo KGB. Kislin identificou o potencial de Trump: um jovem empresário em ascensão. Kislin já rejeitou qualquer ligação ao KGB.

Mais tarde, em 1987, Trump e Ivana visitaram Moscovo e São Petersburgo, com operacionais da KGB a alimentar a ideia de que Trump devia entrar na política.

“Para o KGB, foi uma operação de charme. Eles tinham muita informação sobre a sua personalidade, portanto sabiam quem ele era pessoalmente. O sentimento é que ele era extremamente vulnerável intelectualmente e psicologicamente e muito sensível a elogios”, disse o ex-espião ao “Guardian”.

“Foi isto que exploraram. Jogaram o jogo como se estivessem imensamente impressionados com a sua personalidade e transmitindo-lhe que ele era o tipo que devia ser presidente dos EUA um dia: são este o tipo de pessoas que podem mudar o mundo. Eles alimentaram-lhe com uma série de soundbites e funcionou- Foi um grande acontecimento para o KGB”, acrescentou.

Quando então regressou aos EUA começou a explorar uma nomeação republicana para a campanha presidencial e chegou a realizar um comício. Começou também a publicar anúncios em jornais, onde criticava o Japão por considerar que explorava os EUA e também expressava cetiscismo sobre a participação dos EUA na NATO. Chegou mesmo a escrever uma carta aberta ao povo americano: “A América devia parar de pagar para defender países que não se podem defender a si próprios”.

Shvets tinha entretanto regressado a Moscovo e revela como as ações de Trump foram bem recebidas na primeira diretoria do KGB na sua sede.

“Nunca tinha acontecido nada assim. Eu tinha conhecimento das medidas ativas do KGB nas décadas de 70 e 80, e depois das medidas da Rússia, mas nunca ouvi nada semelhante. Era difícil acreditar que alguém mandaria publicar [anúncios] no seu nome e que iria impressionar pessoas sérias no ocidente, mas foi o que aconteceu e ele tornou-se presidente”, afirmou.

Shvets diz que a vitória em 2016 de Trump também foi bem recebida por Moscovo.

Uma investigação do projeto Moscovo concluiu que a campanha de Trump e a equipa de transição tinham tido mais de 270 contactos e quase 40 encontros com operacionais ligados à Rússia. No entanto, a investigação oficial de Robert Muller de 2019 concluiu que não houve conspiração de Trump com a Rússia para interferir nas eleições de 2016.

Shvets deixa críticas à investigação de Muller à interferência russa nas eleições norte-americanas. “O relatório Muller foi uma grande desilusão porque as pessoas esperavam que fosse uma investigação aprofundada entre Trump e Moscovo e ele limitou-se a investigar os assuntos criminais, deixando de fora os aspetos de contra-inteligênncia desta relação”.

Já o autor do livro Craig Unger concluiu que Trump era um “ativo”. Todavia, considera que não houve um grande plano para Trump chegar à presidência, o que aconteceu somente por mero acaso. “Nos anos 80, quando começou, os russos estavam a tentar recrutar muita gente e tiveram como alvo dezenas e dezenas de pessoas. Trump foi o alvo perfeito: vaidoso e narcisista foi o alvo natural para recrutar. Ele foi cultivado durante 40 anos, até à sua eleição”.

Kompromat ou a arte russa de ‘fazer amigos’

Esta estratégia chama-se em russo “kompromat”: tentar obter informações sensíveis sobre uma pessoa (como fotos ou vídeos de algo comprometedor) para depois fazer pressão ou chantagem sobre essa pessoa. Se não cumprisse o pretendido, os serviços secretos destruiriam a reputação da pessoa em causa.

O KGB da União Soviética aperfeiçoou ao máximo esta tática, mas é usada atualmente por serviços de inteligência de todo o mundo.

Um ex-embaixador britânico revelou à “CNN” que os diplomatas são avisados sobre o Kompromat quando são enviados para a Rússia.

“Faz parte de como a Rússia trabalha, que os serviços de inteligência recolham informações sobre indivíduos para usá-las para obterem alguma vantagem”, segundo Tony Brenton.

O Kompromat é até usado hoje em dia pelos atuais serviços secretos russos, incluindo o FSB sucessor do KGB, para recolher todas as informações possíveis.

“Os serviços de segurança russos sugam tudo, porque pode vir a ser útil algum dia. Os aliados de hoje podem virar inimigos depois”, disse em 2017 à “BBC” David Filipov, à época correspondente do “Washington Post” em Moscovo.