Em 2013, Spike Lee fez uma refilmagem americana do filme sul-coreano “Old Boy”, de Park Chan-wook. Quase ninguém gostou. O que um diretor inquieto e insistente como ele faz quando fracassa desse jeito? Tenta novamente.
Mas há uma grande diferença entre americanizar um filme oriental contemporâneo de sucesso e refazer um grande clássico do cinema japonês, “Céu e Inferno”, de 1963, do magnífico Akira Kurosawa.
Além de levar a trama para os EUA, Lee preferiu torná-la contemporânea. Nesse processo, faz com sucesso algo que não conseguiu na outra refilmagem —se apossar do material trazendo-o para seus domínios.
Vemos Denzel Washington no papel que foi de Toshiro Mifune, do magnata que tem um dilema quando Kyle, o filho de seu empregado, é sequestrado por engano no lugar de seu filho, Trey.
“Highest 2 Lowest”, o nome em inglês do filme de Spike Lee, é uma referência a “High and Low”, título que o filme de Kurosawa recebeu nos EUA, além de rimar com os tons mais altos e mais baixos usados numa música, como também com as diferentes alturas por onde os personagens se movem, do topo de um edifício imenso ao submundo do crime.
É refilmagem de Kurosawa, certo, mas é também uma repatriação do romance “King’s Ransom”, de 1956, que serviu de base ao filme de 1963. O livro fez parte de uma série policial chamada “87th Precint”, publicada entre 1956 e 2005 por Ed McBain, pseudônimo do escritor norte-americano Evan Hunter (1926-2005).
O diretor de “Faça a Coisa Certa” —título que serviria como uma luva aqui— faz de Washington um magnata da indústria fonográfica, não mais o dono de uma fábrica de sapatos de “Céu e Inferno”.
David King, e não Douglas King, como no livro, é fundador e presidente da Stackin’ Hits Records, descobridor de novos talentos com enorme faro e milionário com um monte de discos de platina para ostentar.
O funcionário que tem o filho raptado é Paul, vivido por Jeffrey Wright, seu motorista e grande amigo que no passado teve problema com a lei. O dilema é grande. King está perto de perder o comando de sua gravadora e planeja algo que lhe daria o controle da situação. Ter de pagar o resgate praticamente impossibilitaria esse movimento.
Não pagar, porém, é correr o risco de sujar suas mãos de sangue, além de queimar definitivamente sua reputação junto às mídias sociais, caso o sequestrador faça o que prometeu. O mundo conectado da internet surge então como um catalisador dos problemas do executivo, pois um movimento em falso pode ter consequências terríveis para seu futuro profissional.
Mais uma mudança em relação ao livro e ao filme de Kurosawa —não são mais crianças muito próximas que o sequestrador confunde, mas adolescentes, muito unidos, e capazes de julgar. Isto faz com que o pai possa ser questionado pelo filho em sua decisão inicial de não pagar o resgate.
Outra mudança importante —o lar do magnata não é mais uma casa na colina com uma grande janela, que pode ser vista de uma favela, mas um prédio muito alto e estilizado, com vista para a ponte do Brooklyn.
Essa diferença tem grande consequência no aspecto visual do filme. Vemos o tempo todo aquela paisagem se desnudando aos olhos de quem habita o apartamento privilegiado. De baixo, quem está na luta para sobreviver também observa aquela pompa toda com inveja ou sentimento de injustiça social.
Por fim, para a entrega do resgate o sequestrador confiou em vários comparsas, que executam um plano envolvendo o metrô de Nova York e a interrupção brusca do movimento do trem para que ele parasse bem em cima de onde acontecia um festejo porto-riquenho.
Ter um protagonista da indústria fonográfica ainda é pretexto para Spike Lee rechear a trilha sonora com grandes canções de soul e funk do passado, como em boa parte de sua carreira. Mas o filme começa devagar, com um exagero meloso ao piano.
Assim que a trama engrena, depois de uns vinte minutos, a música original melhora bastante, pela boa mão de Howard Drossin. Para um filme que trata de bom ouvido musical, é essencial ter uma boa trilha sonora.
A refilmagem de Lee é um pouco mais curta que o longa original. Mesmo assim, a introdução dos personagens parece mais lenta, com Washington sendo parado por aspirantes a músicos de sucesso e discutindo sobre o uso de inteligência artificial na música, o que para ele destrói o motivo pelo qual ele escolheu essa profissão.
“Luta de Classes” nunca deixa de nos entreter, mostrando a habilidade do diretor na condução de tramas que exigem uma boa dose de tensão, como a de “O Plano Perfeito”, longa que realizou em 2007 em tom semelhante. Spike Lee em forma é motivo de comemoração.