Nos últimos anos, a comunidade científica passou a questionar se a aspirina era mesmo necessária no tratamento pós-infarto. O regime padrão adotado nesses casos para prevenir novos eventos cardiovasculares combina o medicamento a um outro anti-plaquetário, ambos com a função de reduzir o risco de formação de coágulos. A dupla, no entanto, pode aumentar a chance de sangramentos nos pacientes por afetar a coagulação sanguínea.

A partir dessa preocupação, os pesquisadores começaram a se perguntar: seria possível retirar a aspirina do tratamento sem comprometer a proteção cardíaca?

Um novo estudo brasileiro, apresentado em Madri neste domingo, 31, como um dos destaques do Congresso da Sociedade Europeia de Cardiologia, mostrou que suspender a aspirina no pós-infarto é uma conduta arriscada e que o tratamento com as duas drogas, portanto, deve ser mantido.

A pesquisa, cujo artigo completo foi publicado no New England Journal of Medicine, um dos periódicos científicos mais respeitados do mundo, foi liderado pelo cardiologista intervencionista Pedro Lemos, diretor da cardiologia do Einstein Hospital Israelita, que acompanhou mais de 3 mil pacientes durante 12 meses.

Lemos explica que o infarto acontece quando a artéria do coração é obstruída abruptamente, por conta do acúmulo de coágulos. “Um stent é colocado para desobstruir a artéria. Mas, depois disso, é necessário prevenir que os coágulos não se juntem novamente”, pontua.

Aspirina é aliada no tratamento após um infarto Foto: InsideCreativeHouse/Adobe Stock

Para isso, os pacientes recebem a chamada terapia antiplaquetária dupla (DAPT) com o objetivo de “afinar” o sangue e evitar o acúmulo de coágulos.

De acordo com Arthur Rente, cardiologista e membro da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), as plaquetas, no entanto, são a primeira forma de defesa do corpo contra sangramentos, formando um “tampão”. São elas, por exemplo, que possibilitam a formação daquelas casquinhas quando a gente se machuca.

“Agora, imagina que quem se cortar não terá essa proteção. Muitas vezes, fazemos lesões dentro do organismo e nem percebemos, porque as plaquetas vão lá e controlam o sangramento. Mas, quando se usa esses antiagregantes plaquetários, isso não acontece. Os sangramentos podem evoluir e, algumas vezes, não são pequenos: podem exigir internação, transfusão e até levar ao óbito”, detalha Rente.

Diante do efeito indesejado da DAPT, pesquisadores começaram a tirar a aspirina do tratamento depois de três meses do uso em conjunto com outra droga. Os resultados, segundo Lemos, foram positivos. “Mas ainda existia a seguinte dúvida: que tal a gente não usar a aspirina desde o início? Então, a partir disso nós realizamos o estudo, para saber se era possível retirar a aspirina e manter a mesma proteção, mas evitar os sangramentos”, destaca.

O estudo, um ensaio clínico randomizado, aberto e controlado, contou com a participação de 3.410 pacientes de 50 centros do Brasil. Parte dos participantes fez o tratamento de monoterapia, sem aspirina, e a outra parte recebeu a DAPT.

“Os pacientes foram seguidos por 12 meses e, depois ou ao longo desse período, nós medimos o que aconteceu com eles. O que nós percebemos foi que a retirada precoce da aspirina (nos primeiros 30 dias) não deve ser realizada. O ideal é manter a aspirina junto com a outra medicação”, ressalta o autor do estudo.

Os pacientes submetidos à monoterapia apresentaram maior risco de infarto, acidente vascular cerebral ou necessidade de nova intervenção, especialmente no primeiro mês após o procedimento. Passado esse período inicial, o risco se aproximou ao do grupo em uso de DAPT. No total, 7% dos pacientes da monoterapia tiveram algum evento isquêmico (morte, infarto, derrame ou nova intervenção), contra 5,5% no grupo da DAPT.

Por outro lado, a monoterapia esteve associada a menor incidência de sangramento ao longo de 12 meses: 2% dos pacientes foram afetados, em comparação com 4,9% entre os que receberam DAPT. Lemos, no entanto, pontua que “apesar de fazer sangrar um pouco mais, o uso das duas drogas é mais protetivo”.

“Toda vez que fazemos um estudo tão abrangente como esse, envolvendo pacientes com infarto, buscamos uma resposta populacional, ou seja, entender o que é melhor para a maioria. O que observamos foi que, do ponto de vista de uma política ampla, a melhor estratégia é oferecer aspirina para todos. Agora, pode haver subgrupos de pacientes em que a retirada mais precoce da aspirina traga benefícios, é uma possibilidade”, diz ele, que pretende dar seguimento aos estudos do tema para observar se há diferentes padrões nesses subgrupos.