Um modelo de inteligência artificial (IA) desenvolvido por pesquisadores da Mayo Clinic, nos Estados Unidos, é capaz de identificar a amiloidose cardíaca — doença rara que leva ao acúmulo de proteínas anormais no coração, dificultando o funcionamento do órgão, pondo a vida em risco. O sistema aplicado ao exame de ecocardiografia obteve precisão diagnóstica, ao atingir 85% de sensibilidade e 93% de especificidade em uma ampla amostra de pacientes de diferentes etnias e regiões do mundo.
Para o estudo, foram examinados 2.541 pacientes. Segundo os resultados, o modelo de IA previu com sucesso seis meses antes do diagnóstico clínico em 59% dos casos. Os cientistas afirmam ser esta a primeira e única IA do mundo que detecta essa condição com tamanha acurácia a partir de um único vídeo de ecocardiograma.
O estudo publicado na revista European Heart Journal contou também com a participação de pesquisadores da Universidade de Chicago. O modelo de IA foi rigorosamente testado em uma base de dados clínicos diversificada e robusta, validando sua eficácia em identificar todos os subtipos principais da amiloidose cardíaca. Além disso, conseguiu diferenciá-los de outras doenças cardíacas com apresentações clínicas semelhantes, o que tradicionalmente torna o diagnóstico um grande desafio.
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Inovação
A tecnologia de inteligência artificial utilizada no estudo é baseada em aprendizado profundo (deep learning), um ramo da IA que simula o funcionamento do cérebro humano para processar dados complexos. Nesse caso, o algoritmo foi treinado com milhares de vídeos de ecocardiogramas — exames não invasivos amplamente utilizados na prática clínica —, e aprendeu a reconhecer padrões sutis que indicam a presença de amiloide no tecido cardíaco, algo que pode passar despercebido até mesmo por especialistas experientes.
Patricia Pellikka, cardiologista da Mayo Clinic, autora senior do estudo e ex-diretora do Laboratório de Ecocardiograma da instituição, disse que esse modelo é um divisor de águas no atendimento a pacientes com suspeita de amiloidose. “Trata-se de uma ferramenta revolucionária, capaz de auxiliar o médico a identificar precocemente uma condição frequentemente negligenciada. A IA superou métodos tradicionais de triagem, inclusive, a análise clínica convencional e o ecocardiograma transtorácico realizado sem suporte de tecnologia”, afirma a especialista.
O modelo recebeu certificação, portanto aprovação da Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos, atestando sua segurança e viabilizando sua implementação. A ferramenta pode ser integrada de maneira simples à rotina dos hospitais: basta que o vídeo do ecocardiograma, realizado rotineiramente em milhares de pacientes com queixas cardíacas, seja analisado por meio do algoritmo. Em questão de segundos, o sistema entrega uma avaliação com alto grau de confiabilidade sobre a possível presença de amiloidose, orientando o médico sobre a necessidade de exames confirmatórios mais específicos, como biópsias, cintilografia com pirofosfato ou ressonância magnética cardíaca.
O desenvolvimento desse novo modelo de IA também se apoia em avanços anteriores da mesma equipe. Em 2022, a Mayo Clinic e a Ultromics lançaram outra ferramenta de IA aprovada pela FDA, voltada para a detecção da insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP) — um subtipo comum de insuficiência cardíaca, caracterizado por sintomas típicos, mas com função de bombeamento aparentemente normal nos exames tradicionais. Essa condição é muitas vezes mal diagnosticada, e estima-se que até 15% dos pacientes com ICFEP tenham, na verdade, amiloidose cardíaca não reconhecida.
Efeitos
O modelo de IA para detectar a amiloidose cardíaca pode ter um impacto duplo: não apenas aprimora a triagem dessa doença rara, mas também oferece uma ferramenta poderosa de diagnóstico diferencial, contribuindo para a elucidação de casos de ICFEP com etiologia ambígua. Isso pode evitar tratamentos inadequados e abrir caminho para terapias personalizadas baseadas em evidência concreta.
“Estamos vivenciando uma mudança de paradigma. Essa IA não substitui o julgamento clínico, mas oferece um apoio inestimável, especialmente em cenários complexos ou com poucos recursos. Quanto mais cedo conseguimos detectar a amiloidose, maiores são as chances de controlar a doença e oferecer ao paciente uma qualidade de vida significativamente melhor,” destaca Pellikka.
À medida que novas aplicações de IA continuam a emergir no campo da saúde, espera-se que modelos como esse inspirem outros projetos inovadores. A combinação entre grandes bancos de dados clínicos, algoritmos sofisticados e validação multicêntrica internacional pavimenta o caminho para uma medicina mais eficiente, precisa e humana.
*Estagiária sob supervisão de Renata Giraldi
Doença rara, grave e silenciosa
A amiloidose cardíaca é uma doença potencialmente fatal, caracterizada pelo acúmulo anormal de proteínas chamadas amiloides no tecido cardíaco, o que prejudica a função do coração ao torná-lo rígido e incapaz de bombear o sangue adequadamente. Em geral, é confundida com outros tipos de insuficiência cardíaca, pois os sintomas iniciais são pouco específicos — como fadiga, falta de ar, inchaço e palpitações — dificultando um diagnóstico precoce e comprometendo o início oportuno do tratamento.
Estudos indicam que, quando não diagnosticada precocemente, a amiloidose cardíaca pode evoluir rapidamente e levar a complicações graves, incluindo insuficiência cardíaca congestiva, arritmias e morte súbita. No entanto, nos últimos anos, avanços significativos no desenvolvimento de terapias farmacológicas permitiram que o tratamento da doença fosse mais eficaz — desde que iniciado ainda nas fases iniciais.
O novo panorama terapêutico, indicado pelo modelo de inteligência artificial desenvolvido para o diagnóstico, mostra como uma ferramenta de triagem rápida, eficiente e acessível pode ajudar no tratamento e na prevenção de mortes. A amiloidose pode levar a uma taxa de mortalidade de até 65% em cinco anos em pacientes não tratados, segundo a literatura científica. (RB)
TRÊS PERGUNTAS PARA…
FABRÍCIO DA SILVA, médico cardiologista da Amplexus Saúde Especializada
Existe uma preocupação ética em relação ao uso da IA em diagnósticos médicos no Brasil? Como garantir que ela seja usada de forma complementar e não substitutiva ao raciocínio clínico?
Sim, na verdade, a gente ainda está em fase de regulamentação e conhecendo os limites dessas ferramentas e entendendo quais são as principais atuações. Então até a gente conseguir ter maior clareza em relação à forma de utilização, as regulamentações para uso e acesso e, obviamente, ter a conscientização dos pacientes para que saibam utilizar de forma assertiva sem a substituição, ela ainda tem essa preocupação ética. Para a gente reduzir a chance da ferramenta ser utilizada de uma forma substitutiva, mas complementar, é importante que os médicos tenham treinamentos adequados em relação à utilização da ferramenta, porque sim, de fato, ela é útil para avançar em ampliar leques de possibilidades diagnósticas e apoiar em relação a protocolos e planejamentos de investigação, mas claro que as tomadas de decisões finais e o raciocínio levando em consideração a história do paciente, o contexto sociocultural, as questões familiares, tudo isso tem que ser levado em consideração para tomada da decisão em relação ao melhor tratamento.
Em sua experiência, quais são os principais desafios para o diagnóstico precoce da amiloidose cardíaca no Brasil?
Em relação à amiloidose cardíaca, os principais desafios são, primeiro, a capacitação dos médicos generalistas em conhecer a patologia, entender que ela é uma condição relativamente prevalente, especialmente quando a gente pensa na forma dos pacientes idosos, que tem o cometimento de uma alteração da função do coração que cursa com a insuficiência cardíaca e que passa, às vezes, despercebido pelo médico generalista, imaginando que sairia uma insuficiência cardíaca convencional do paciente idoso. Esse é o primeiro. E o segundo são os acessos aos métodos diagnósticos. Primeiro que a ressonância magnética cardíaca, a cintilografia, são os exames de auxílio para confirmação diagnóstica e nem todo serviço tem acesso à realização desses exames. Além disso, os testes genéticos têm importante papel nas diferenciações, até para definir os pacientes que têm tratamentos específicos e também o acesso hoje socialmente falando é algo restrito e não divulgado.
A IA usada no estudo teve 85% de sensibilidade e 93% de especificidade. Como o senhor interpreta esses números na prática clínica?
Quando se pensa em sensibilidade elevada, consegue-se realmente ter uma abordagem ampla de possibilidade de diagnóstico, uma especificidade, uma aproximação do diagnóstico assertivo muito elevado de 93%. É, sim, uma ferramenta importante a ser utilizada como apoio para o médico em relação à tomada de decisão para terapia e tratamentos. É preciso considerar a avaliação do exame físico, juntamente com a alteração dos exames complementares e a definição de todos os contextos como sócios culturais, como familiares, estilo de vida, capacidade funcional. Deve ser individualizado para a decisão sobre o tratamento de alguma condição encontrada. As limitações em relação ao ecocardiograma é que ele ainda é um exame que depende do examinador. Na prática, um médico-executor e, obviamente, da qualidade do equipamento. Então, as análises das imagens podem ser, sim, comprometidas, pois depende de estrutura e da capacitação dos profissionais-executores. (RB)