É difícil imaginar Darren Aronofsky fazendo alguém rir. O homem que torturou Natalie Portman em Cisne Negro, que criou uma das sequências de drogas mais perturbadoras do cinema em Réquiem para um Sonho e que fez Jennifer Lawrence viver um inferno doméstico em Mãe! decidiu, aos 55 anos, que quer ser engraçado.
O resultado dessa reviravolta está em Ladrões, filme que chegou aos cinemas na última quinta-feira, 28, e que representa talvez a maior surpresa da carreira do diretor americano. Não pela qualidade – que oscila entre o competente e o genérico –, mas pelo que revela sobre um artista aparentemente cansado de sua própria reputação.
‘Ladrões’ é um filme divertido com Austin Butler e grande elenco Foto: Sony Pictures/Divulgação
A trama, que parece uma colagem de ideias extraídas de Guy Ritchie e dos irmãos Coen, conta a história de Hank (Austin Butler), ex-jogador de beisebol que vive num apartamento apertado. Sua vida muda quando o vizinho punk (Matt Smith) viaja e deixa o gato sob os cuidados de Hank. Esse simples ato desencadeia uma onda de violência, conforme o protagonista é confundido e percebido como aliado do vizinho, que deve dinheiro para mafiosos ucranianos e dois irmãos judeus violentos.
A partir daí, Aronofsky desenvolve uma comédia de erros genuinamente engraçada, ainda que sem personalidade marcante, sobre personagens envolvidos numa espiral de violência. Hank parece não ter trégua: tudo ao redor desmorona mesmo sem ele ter qualquer responsabilidade ou sequer compreender o que acontece. Violência e humor se entrelaçam, sem um elemento sobrepor o outro.
Uma tentativa de reinvenção
Ladrões apresenta dois lados distintos: humor situacional típico dos irmãos Coen e cinema urbano com personagens marginalizados, característico de Guy Ritchie, tentando sobreviver na selva de pedra nova-iorquina. Dois elementos que funcionam, mesmo que em desarmonia, produzindo um resultado satisfatório na tela.
A grande questão envolvendo a produção, que conta com elenco comandado por Butler (Duna: Parte II) e bons atores de apoio como Zoë Kravitz, Vincent D’Onofrio e Matt Smith, é a falta de personalidade. Desde Pi, Aronofsky construiu uma persona ao redor do nome e do cinema. Conhecido por ser estranho, provocativo e bizarro, certamente polêmico, com pessoas amando odiar tudo que faz.
Evidentemente, qualquer cineasta pode testar limites, linguagens e gêneros. Kubrick, Spielberg, Scorsese e Cuarón nunca se contentaram em ser uma coisa só – fizeram dramas, ficções científicas, comédias. O problema em Ladrões não é a mudança de gênero, mas a pasteurização do risco.
Quando Kubrick dirigia comédia, percebia-se sua mão e personalidade. Era possível sentir que a mesma mente brilhante estava por trás de 2001, O Iluminado e Dr. Fantástico. Existiam ideias e conceitos que conversavam entre si. Este filme de Aronofsky, por mais eficaz nos objetivos, parece trabalho apático do cineasta, como se fosse apenas para cumprir demandas de produtores.
Um diretor em metamorfose
Durante coletiva de imprensa realizada no México para o lançamento do filme, com transmissão simultânea no Brasil, Aronofsky revelou aspectos importantes sobre sua nova direção artística, embora tenha demonstrado comportamento hostil com mediadores, jornalistas e estudantes de cinema presentes.
O diretor fez declarações reveladoras sobre o trabalho e suas intenções. “Por duas horas, quero que as pessoas esqueçam o mundo, seus problemas, e assistam ao filme”, explicou, definindo Ladrões como experiência de puro entretenimento.
Aronofsky foi enfático ao marcar diferença de tom em relação aos trabalhos anteriores. “Os primeiros 10 minutos de Ladrões têm mais piadas que todos os meus filmes juntos”, declarou. “Tento fazer com que todos meus filmes entretenham, que segurem a atenção. Não quero que seja realmente perturbador, mas mais empolgante”, continuou, numa tentativa de justificar a mudança de direção criativa.
Questionado sobre escolhas estilísticas, defendeu sua versatilidade e negou ser tão peculiar quanto a fama sugere. “Meus filmes anteriores tinham gêneros misturados. Cisne Negro não é bem um filme de dança, O Lutador não é bem um filme de esportes”, argumentou.
Por fim, numa declaração que talvez explique Ladrões, o diretor revelou sua motivação atual. “Não quero que as pessoas pensem que sou tão problemático quanto meus filmes”, diz.
O preço da fórmula
No final, a sensação é de que Aronofsky praticamente se esconde em Ladrões, entregando um filme engraçado, bem atuado, com bons momentos de tensão, mas que nunca chega ao objetivo justamente pela falta de ambição cinematográfica. É produto interessado em cumprir cartilhas estabelecidas. Para um diretor como Aronofsky, isso representa retrocesso significativo.
Cinema precisa ser embate, precisa ter ideias. Quando esses elementos se esvaziam, é hora de questionar qual direção tomar. Ladrões funciona como entretenimento, mas deixa a impressão de que um dos cineastas mais singulares da atualidade está tentando desesperadamente se livrar daquilo que o tornou especial – mesmo que isso signifique perder sua identidade artística no processo.