Há 139 anos, em 1º de setembro de 1886, nascia a pintora Tarsila do Amaral. Ícone da primeira geração modernista brasileira, ela se destacou junto ao movimento de renovação das artes visuais e de superação dos cânones acadêmicos nas primeiras décadas do século 20.
Tarsila operou uma adaptação bem-sucedida da linguagem das vanguardas europeias à realidade e à poética de seu país, produzindo um estilo bastante original, expresso em algumas das obras mais conhecidas da história da arte brasileira, tais como “Abaporu” e “Antropofagia”.
Suas pinturas constituem uma verdadeira celebração da brasilidade. Tarsila retratou as paisagens tropicais, a vida da gente comum, a religião, o folclore, os festejos populares, a diversidade étnica e os demais elementos que formam a identidade nacional.
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A artista também se notabilizou como uma das pioneiras da pintura de cunho social no Brasil. Militante do Partido Comunista (PCB), ela ajudou a difundir o conhecimento sobre o realismo socialista e produziu diversas obras abordando o cotidiano da classe trabalhadora e os problemas sociais
Os primeiros anos
Tarsila de Aguiar do Amaral nasceu na Fazenda São Bernardo, em Capivari (hoje Rafard), no interior de São Paulo, filha de Lídia Dias de Aguiar e de José Estanislau do Amaral Filho. Ela descendia de uma família aristocrática, dona de grande fortuna e de fazendas espalhadas pelo interior paulista.
Tarsila passou a infância entre as propriedades rurais de seus pais em Capivari e Itapeva. Foi educada em casa por Marie van Varemberg d’Egmont, uma tutora belga que a ensinou a ler, escrever, bordar e a falar francês.
Posteriormente, a jovem prosseguiu com o ensino formal na capital paulista, onde estudou em um internato de freiras no bairro de Santana e foi aluna do Colégio Sion.
Já adolescente, Tarsila viajou para a Europa, a fim de concluir os estudos no Colégio Sacré-Coeur, em Barcelona, onde ganhou prêmios por seu desempenho estudantil e teve seus primeiros contatos com a pintura.
De volta ao Brasil, a jovem se casou com André Teixeira Pinto, pai de sua única filha, Dulce, nascida em 1906. O casamento, entretanto, durou pouco tempo. Possessivo e autoritário, André se irritava com o fato de Tarsila se devotar à pintura, exigindo que a esposa se dedicasse exclusivamente à vida doméstica.
Instada a escolher entre a carreira artística e o casamento, Tarsila não teve dúvidas. Ela se separou do marido e voltou a morar com os pais. Ocupou-se desde então de sua profissionalização.
O Grupo do Cinco
Em 1917, Tarsila ingressou no ateliê de Pedro Alexandrino, célebre pintor de naturezas-mortas. Foi nesse período que ela conheceu Anita Malfatti, outra aluna de Alexandrino que se destacaria como uma pioneira do modernismo brasileiro.
Tarsila também teve aulas com o pintor Georg Elpons e em 1920 viajou para Paris, matriculando-se na prestigiosa Academia Julian, onde aprendeu a desenhar nus e modelos vivos. Ela também estudou no ateliê de Émile Renard.
Durante sua estadia na Europa, Tarsila teve contato com os movimentos artísticos modernos, mas foi influenciada de forma apenas tangencial, dedicando-se a produzir pinturas embasadas pelo figurativismo acadêmico.
Após seu retorno ao Brasil, no entanto, a pintora aderiu progressivamente ao experimentalismo e à estética moderna — em grande parte por influência de Anita Malfatti. Foi Anita quem apresentou Tarsila aos intelectuais modernistas Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti del Picchia, que passariam a frequentar seu ateliê e dariam origem ao chamado “Grupo dos Cinco”.
O grupo se tornaria uma referência de agitação cultural em São Paulo, organizando reuniões, conferências, festas e exposições que ajudaram a difundir as inovações artísticas das vanguardas do modernismo.
O Grupo dos Cinco também forneceria os referenciais artísticos e ideológicos da Semana de Arte Moderna de 1922, marco histórico da renovação das linguagens artísticas no Brasil. Tarsila, entretanto, estava em Paris e não pôde participar do evento.
Tarsila do Amaral retratada por volta de 1925
Wikimedia Commons
Pau Brasil e Movimento Antropofágico
Após a Semana de Arte Moderna, Tarsila iniciou um relacionamento amoroso com Oswald de Andrade. Em 1923, ela retornou a Paris, onde travou contato com os pintores cubistas e começou a frequentar o ateliê de André Lhote, aproximando-se de Pablo Picasso e Fernand Léger.
Tarsila se tornou muito próxima do poeta suíço Blaise Cendrars, que a integrou plenamente aos círculos intelectuais parisienses. A brasileira passou a conviver com nomes como o casal Delaunay, o pintor Albert Gleizes, o escritor Jean Cocteau, o escultor Constantin Brancusi e os músicos Igor Stravinski e Erik Satie.
A residência de Tarsila em Paris também se tornou um ponto de encontro de brasileiros radicados na França, recebendo visitas constantes de nomes como Heitor Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Santos Dumont e de mecenas como Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado.
Em 1924, Tarsila se uniu aos outros modernistas e a Blaise Cendrars para realizar uma viagem de “redescoberta” do Brasil. Ela visitou as festas populares no Rio de Janeiro e as cidades históricas de Minas Gerais, buscando observar as cores e as formas tropicais, a fauna, a flora, o folclore e as manifestações culturais regionais.
A viagem seria o marco inicial da fase artística denominada “Pau-Brasil”, marcada pela junção das cores vibrantes e dos elementos da visualidade popular brasileira ao rigor formal dos movimentos de vanguarda europeus.
As temáticas europeias, que até então monopolizavam quase todo repertório acadêmico, eram finalmente substituídas pelas paisagens nacionais, por cenas do interior, por representações do cotidiano e dos festejos das massas, pelas lendas e mitos do imaginário popular.
Em 1926, Tarsila se casou com Oswald de Andrade e realizou sua primeira exposição individual, sediada na Galeria Percier, em Paris. A partir de então, intensificou sua busca pela “brasilidade” e pintou “Abaporu”, sua obra mais conhecida.
A tela influenciou a criação do Movimento Antropofágico, que se opunha à reprodução acrítica das influências culturais estrangeiras, propondo a assimilação harmoniosa e contextualizada da arte internacional de modo a criar uma arte nacional mais genuína, que preservasse suas características autóctones.
Impulsionada pelos referenciais teóricos esboçados por Oswald, Tarsila deu início à produção da chamada “Fase Antropofágica”, marcada pela substituição progressiva da geometrização por formas orgânicas originais — com influência expressiva do surrealismo, mas fortemente mediada pela cultura brasileira e pelos temas nacionais.
A Fase Social
Em 1929, Tarsila realizou sua primeira exposição individual no Brasil, sediada no Rio de Janeiro. A mostra era o primeiro de uma série projetos ambiciosos relacionados à difusão do Movimento Antropofágico no país.
Não obstante, a quebra da Bolsa de Valores de Nova York obrigaria a pintora a rever seus planos. A Grande Depressão causou a falência de sua família, cuja fortuna se baseava no plantio do café. Tarsila perdeu sua fazenda e todos os seus bens e teve de começar a trabalhar em ofícios comuns para se sustentar.
No mesmo ano, Tarsila se separou de Oswald de Andrade, após descobrir seu relacionamento extraconjugal com a jovem escritora Pagu. Em 1930, a pintora assumiu o cargo de conservadora da Pinacoteca do Estado de São Paulo e iniciou a confecção do catálogo do acervo, mas foi afastada da função após a queda de Júlio Prestes no movimento armado liderado por Getúlio Vargas.
Ainda em 1930, Tarsila iniciou seu namoro com o médico comunista Osório Cesar. O relacionamento resultou em uma prolífica parceria de inspiração intelectual e profissional mútua — ela o inspirou a utilizar a arte como ferramenta terapêutica em pacientes psiquiátricos e ele a instruiu sobre o comunismo e a sensibilizou para as causas operárias e as questões sociais.
Em 1931, Tarsila se filiou ao Partido Comunista do Brasil (antigo PCB) e viajou com Osório para a União Soviética. A artista passou meses viajando pela nação socialista e trabalhou como operária da construção civil e como pintora de paredes para arcar com as despesas.
Em Moscou, Tarsila se aproximou do pintor Serge Romoff. Também expôs algumas de suas obras no Museu Estatal de Arte Moderna Ocidental, ocasião em que o governo soviético adquiriu a tela “O Pescador”. Logo após retornarem ao Brasil, Tarsila e Osório foram presos sob a acusação de “subversão”.
A visita à União Soviética, o contato com o realismo socialista, a militância no PCB e o relacionamento com Osório César inspiraram a artista a abordar o cotidiano da classe trabalhadora e as questões sociais nas suas obras. Tarsila iniciou então sua “Fase Social”, produzindo telas como “Operários”, “Segunda Classe”, “Costureiras” e “Orfanato”.
A pintora também proferiu sua célebre conferência sobre a “Arte Proletária na União Soviética” no Clube de Artistas Modernos (CAM), que se tornou um marco na difusão do conhecimento sobre o realismo socialista no Brasil.
O relacionamento com Osório César, no entanto, não durou muito tempo. Tarsila também terminou por se frustrar com a militância no PCB, afastando-se das atividades partidárias, embora tenha seguido abordando a temática social pelo resto da vida.
As últimas décadas
Em meados dos anos 30, Tarsila se uniu ao jornalista, crítico de arte e poeta Luís Martins, que seria seu companheiro nas décadas seguintes. Nos anos 40, ela desenvolveu um novo estilo, retomando algumas características da Fase Antropofágica e da estética surrealista (desenvolvendo o chamado “gigantismo onírico”), mas mesclando-as ao figurativismo da fase social.
A pintora também diversificou os temas abordados, passando a englobar obras históricas, religiosas e composições típicas da pintura de gênero. Essa tendência se manteve até os anos 50, quando Tarsila operou um retorno progressivo aos temas da fase “Pau-Brasil”, com predominância das paisagens rurais.
Já consagrada como um ícone da arte moderna latino-americana, Tarsila foi convidada a expor nas duas primeiras edições da Bienal Internacional de São Paulo e ganhou sua primeira retrospectiva no Museu de Arte Moderna da capital paulista (MAM). Em 1964, a brasileira expôs na 32ª Bienal de Veneza.
Em 1965, já separada de Luís Martins, vivendo sozinha e sofrendo de dores crônicas, Tarsila foi submetida a uma cirurgia de coluna. Um erro médico a deixou parcialmente paralisada e a pintora teve de usar cadeira de rodas até o fim da vida.
Em 1966, sua única filha, Dulce, faleceu em decorrência de complicações da diabetes. Muito deprimida, Tarsila buscou amparo no espiritismo e aproximou-se de Chico Xavier. Passou a doar a maior parte do dinheiro proveniente da venda de suas telas para as obras sociais tocada pelo médium mineiro. Tarsila faleceu em São Paulo em 17 de janeiro de 1973, aos 86 anos.
Ao longo de sua vida, Tarsila do Amaral produziu mais de 230 pinturas e centenas de desenhos, gravuras e ilustrações. Além de impulsionar as vanguardas artísticas que floresceram no Brasil ao longo do século 20, a pintora teve papel fundamental na consolidação de uma identidade artística nacional.
É a partir de Tarsila que o Brasil é estimulado a parar de copiar acriticamente os referenciais artísticos europeus, passando a valorizar a sua própria cultura e a buscar inspiração na sua própria história e na sua própria gente.