Os factos

Afinal funciona? A mobilização da Guarda Nacional de vários estados republicanos para Washington D.C., a capital norte-americana, foi decretada em Agosto pela Administração Trump para responder a uma emergência de criminalidade que as autoridades locais, baseando-se em estatísticas oficiais, desmentiam. Surpreende por isso os próprios democratas que a mayor da cidade, Muriel Bowser, tenha ordenado e prolongado nesta terça-feira, e sem data limite, a colaboração das autoridades locais com as forças federais, sublinhando que “o crime violento no Distrito desceu nitidamente”.

E se funciona, poderão as forças militares assumir um papel recorrente de policiamento? O New York Times questiona, repetindo uma das linhas de ataque do Partido Democrata perante a mobilização de tropas e de agentes federais para territórios por si geridos (a intervenção em Washington D.C. segue-se à de Los Angeles), se não deviam ser os estados republicanos os principais interessados no recurso às Forças Armadas para o combate ao crime. 

Entre as dez cidades mais inseguras dos Estados Unidos, segundo um ranking do US News & World Report, seis estão em estados governados pelo Partido Republicano: Memphis como líder nacional do índice, no Tennessee; St. Louis no Missouri; Alexandria, Nova Orleães e Monroe na Luisiana; e Cleveland no Ohio. 

Nashville, também no Tennessee; Kansas City e Springfield, também no Missouri; Houston no Texas ou Salt Lake City no Utah, já fora do top 10, são outras cidades em estados republicanos com níveis de crime violento superiores ao de Washington, nota o NYT. Na semana passada, os jornalistas perguntaram a Donald Trump se estaria disposto a enviar tropas para estados do seu partido que enfrentem elevados índices de criminalidade. “Claro, mas não há muitas”, disse. Os dados desmentem-no.

Ao invés, e após Washington e Los Angeles, Trump mantém na mira Baltimore, no Maryland democrata, e sobretudo Chicago, no Illinois azul, apesar da objecção das autoridades estaduais e locais (com nota para a excepção aparente do chefe da polícia desta última cidade, que admite cooperar com uma eventual intervenção federal). A sujeição de cidades e estados geridos pela oposição a acções militares mediáticas parece ser, mais do que a segurança pública, o objectivo do Partido Republicano. De outro modo, sublinha o NYT, o governador republicano do Tennessee, Bill Lee, teria mobilizado a Guarda Nacional para a cidade mais violenta do país, que fica no seu próprio estado. Não o fez, mas enviou tropas para D.C..

A justiça, porém, é novamente um obstáculo para os planos de Trump e dos republicanos. Na terça-feira, o juiz federal Charles Breyer, de São Francisco, declarou que a mobilização da Guarda Nacional para Los Angeles tinha sido ilegal, ordenando a desmobilização imediata dos cerca de 300 soldados ainda em missão (foram inicialmente enviados 4000, mais 700 fuzileiros das forças regulares), ou o seu destacamento para as funções que a lei lhes permite efectivamente desempenhar. 

No centro da questão legal, a lei Posse Comitatus, que limita o que as forças militares podem fazer dentro das fronteiras norte-americanas. Não podem, como o juiz Breyer sublinhou, exercer funções de policiamento ou proceder à detenção de civis, salvo circunstâncias muito concretas. Essas excepções são a protecção de agentes e bens federais, a justificação oficialmente apresentada pela Administração Trump para enviar tropas para Los Angeles, mas que é contestada pelo magistrado, que descreveu a mobilização como um “esforço sistemático para utilizar as Forças Armadas em funções de policiamento de segurança pública” e, consequentemente, “uma grave violação da lei Posse Comitatus”.

O veredicto proferido por Breyer proíbe expressamente a participação dos militares, em toda a Califórnia, em “detenções, apreensões, buscas, patrulhas de segurança, patrulhas de trânsito, controlo de multidões, controlo antimotim, recolha de provas, interrogatórios”, ou a sua acção como informadores das autoridades. Em suma, tarefas que estão reservadas, por lei, à polícia civil.

Apesar de a decisão judicial se cingir à Califórnia, e de ser passível de recurso, é agora mais provável que os tribunais levantem entraves semelhantes às intervenções militares que se adivinham em Chicago e Baltimore. Em relação ao Distrito de Columbia, e porque não se trata de um estado, o Governo federal dispõe de um poder legal alargado para prolongar a presença das tropas na rua (eis, no fundo, parte da explicação para a capitulação da mayor Bowser). Em todo o caso, o estrito cumprimento da lei e a sua interpretação rigorosa não têm sido preocupações da Administração Trump.

A análise

Uma fotografia recente da Associated Press exibia um grupo de militares fardados a caminhar em frente à sede do Departamento do Trabalho, em Washington. Na fachada do edifício, um retrato colossal de Trump, de rosto cerrado, e a inscrição “trabalhadores americanos PRIMEIRO”. Quem passasse à distância poderia ser desculpado por pensar que era Trump que estava primeiro. Quem acordasse de um longo coma, ou quem tivesse estado completamente distraído durante alguns anos, poderia também pensar que estaria a assistir a alguma encenação megalómana de uma peça de sátira política.

Em que ponto estão agora os EUA no espectro entre a democracia e outra coisa qualquer? 

Ray Dalio, um influente multimilionário gestor de fundos, recorreu esta semana ao Financial Times para romper um relativo silêncio em Wall Street e apontar paralelos entre a situação actual e os anos 30 do século passado, com especial foco no intervencionismo económico e nacionalista de Trump. Nyhan, politólogo na Universidade de Dartmouth, declarou num podcast da The New Republic que a América se aproxima cada vez mais de um regime de perfil autoritário e com elementos fascistas. 

Na Foreign Affairs, Daniel Ziblatt, co-autor de Como as Democracias Morrem, pede que estudemos o fim da Alemanha de Weimar e a ascensão de Adolf Hitler para recordarmos o risco do abandono das linhas vermelhas. Não escreve uma única vez o nome de Trump, mas o artigo lê-se como um enésimo apelo contra a capitulação da oposição democrata e dos elementos moderados do próprio Partido Republicano:

“A democracia raramente morre num momento apenas. É desgastada através da abdicação: racionalizações e compromissos quando aqueles que têm poder e influência dizem a si mesmos que ceder um bocadinho os protegerá, ou que encontrar terreno comum com um disruptor é mais prático do que fazer-lhe frente. Essa é a lição duradoura de Weimar: o extremismo nunca triunfa sozinho. Vence porque os outros o permitem – por causa da sua ambição, por causa do seu medo, ou porque calculam mal os riscos das pequenas concessões. No final, os que empoderam os autocratas acabam frequentemente por perder não só a democracia, como também a influência que um dia tentaram preservar.”

Na sua excelente newsletter Doomsday Scenario, Garrett ​Graff, jornalista e escritor, considera que os EUA já tropeçaram para lá “da beira do precipício para o autoritarismo e fascismo”, e que resta agora descobrir se lá no fundo está “‘apenas’ a Hungria” ou um “Reich Americano”.

Graff (vale a pena ouvi-lo na NPR), tal como Brendan Nyhan, aponta a crescente militarização das ruas norte-americanas como mais um sinal da rapidez com que os EUA se deslocam agora no referido espectro, para cada vez mais longe do seu pólo democrático (também vale a pena ler a newsletter de outro politólogo, Don Moynihan). 

Na rede social Bluesky, Brendan Nyhan notava a resistência, dentro e fora dos EUA, à ideia de que o país entrou já em terreno autoritário. Os norte-americanos, e todos os que não têm já memória de uma ditadura, imaginam o autoritarismo de forma excessivamente caricatural, como um cenário de permanente terror sob céus negros e fardas pretas, como nos filmes sobre o Holocausto, e essa imagem é incompatível com aquilo a que assistem no quotidiano. A vida, afinal, continua: há trabalho e contas por pagar, há momentos de prazer, há outro mundo para lá das notícias e fora das redes sociais. 

Nyhan e outros que estudaram ou viveram o autoritarismo dizem que este também pode assumir essa aparência de normalidade. Há rotina, há lazer. A diferença está no militar em cada esquina.