Um amigo meu, professor e ensaísta que muito respeito e admiro, diz que, de futuro não contem com ele para estar, seja em que papel for (autor, moderador), em feiras do livro. É pena, pois esse meu amigo é respeitado pelos seus pares, tem uma obra relevantíssima no que diz respeito ao ensaio e as suas intervenções têm sempre interesse. Perdemos nós, mas perdem sobretudo os que organizam feiras. Perdem os editores que, porventura, quisessem ter esse meu amigo como autor nos seus catálogos. Compreende-se, no entanto, que este amigo meu não queira mais ir a feiras. São, quase todas, lugares onde o livro, apesar de ser o pretexto para que se realizem, é o parente pobre do que, na verdade, nas feiras acontece. Vejamos por partes.
Portugal é um país onde, como todos sabemos, se lê pouco. Inquisição que durou quase 300 anos; 48 anos de ditadura salazarista-marcelista; regime liberal oitocentista interrompido por períodos de repressão; uma democracia que, reconquistada em 1974, tem dado nos últimos anos sinais de retrocesso a vários níveis – com especial ênfase no campo educativo onde, verdade seja dita, não fizemos leitores de qualidade de há 25 anos para cá –; uma tendência congénita do português para desconfiar sempre daqueles que sentem porque pensam e pensam porque sentem (o português adora a mediania, o tudo-igual que garante a paz podre das relações humanas e o adormecimento da pulsão vital), ler é um verbo que incomoda. E no entanto, quer a leitura, quer o objeto ‘livro’ são, não raro, sinais de distinção social que muitos apreciam e cultivam. Nada contra. Mas as feiras do livro, visando o lucro, tornaram-se nos últimos dez, quinze, vinte anos – em concordância com o que aconteceu no mercado editorial e as apostas desse mercado em autores e obras que literariamente pouco ou nada valem – inimigas do próprio livro. Melhor: da literatura.
Se é verdade que muitos de nós apreciam estar em feiras do livro – e a do Porto é o melhor exemplo do que afirmo – onde há alfarrabistas com livros raríssimos, belíssimas edições e conversas sempre ricas através das quais mostram que sabem de livros e de leituras, certo é também que se vem instalando aceleradamente uma forma de se falar do livro e da leitura que, no fundo, superficializa, ou banaliza, a própria ideia de feira, de livro e, claro, de literatura. Talvez o amigo de quem falo (não revelo a sua identidade porque, tal como este meu amigo, muitos outros há que pensam o mesmo) sinta, experiente que é, que ir a uma feira do livro já pouco tem que ver com o pensar a literatura, qual o seu lugar numa sociedade encapsulada nas redes sociais, desritualizada e sem noção do que seja ‘literatura’. Se andarmos pelos stands das feiras do livro que se realizam no Verão, que vemos? Que o que se patrocina é o livro de leitura fácil, esse cujo texto jamais constituirá um problema existencial para o leitor de grau-zero que é quase toda a gente. Pretensiosismo meu? Seja. Leibniz pode ensinar a uns quantos o que é verdadeiramente fácil.
Ora, como a literatura que está nas feiras do livro é muitas vezes um arremedo de literatura, assim como muitos que escrevem podem até escrever mas não serão nunca gente que tenha literatura dentro de si, talvez a alguém que já deu para estes campeonatos (o das feiras do livro, o das mesas com livros a autografar para o leitor inexistente que comprará as bulas da moda, mas desconhece o código literário, o dos debates sem consequência alguma, o das apresentações inúteis), insistir em estar e falar em feiras do livro é coisa a não repetir. Este meu amigo é mais velho do que eu. Viu muito mundo. Ironia e bonomia, inteligência e distanciamento são nele faces da sua rica e complexa personalidade. Mas eu, por enquanto, continuarei a ir a feiras do livro.
Estive na do Porto onde comprei, por preço imbatível, livros extraordinariamente belos – livros com literatura, claro. Desde logo a edição de Lisboa Livro de Bordo de Cardoso Pires, a que tem a chancela da Círculo Leitores, de 1998. Um outro livro? A Gata Borralheira, romance de Tomaz de Figueiredo, um escritor hoje que poucos frequentam. Ler a sua prosa impõe-se, como se impõe ler (no meu caso, reler) outros dois livros do Cardoso Pires; livros estes que igualmente comprei ao meu amigo Marco, na Reler (é esse o nome deste alfarrábio de Vizela), stand onde encontrei o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa e o presidente da Câmara do Porto. Com Marcelo estive à conversa justamente sobre livros: «Então o que é que o António Carlos está a ler?». E claro que a esta pergunta de Marcelo Rebelo de Sousa, assim à queima-roupa, não tive outra hipótese. Que lia os livros comprados ao meu amigo Marco, o sabedor alfarrabista. Uma edição em especial afinou o olhar de lince do Sr. Presidente: a edição das obras completas de Ferreira de Castro, em papel-bíblia, ali, assim, por uns módicos 18 euros!! E vi o que Marcelo comprou: uma histórica edição de Os Maias, talvez a 3ª, com o proveito de, sob o atento olhar de Rui Moreira, falarmos da importância destas feiras não só para o negócio do livro, mas para ouvir-se falar de livros… Suspeito que terei feito um esgar de dúvida assim que o nosso Presidente disse isso. Sim, as feiras são essenciais: são inclusivas, são momentos em que, ao ar livre, gerações várias se misturam, comprando livros!
Satisfeito por me ter encontrado por acaso com Marcelo e com Rui Moreira, pensei, em todo o caso, no meu amigo que diz que não irá a mais feira nenhuma… Sim, posso concordar que nem sempre quem ali ouvimos a falar de livros, sejam seus ou de outros, sabe exatamente do que está a falar. Concordo que há um excesso de musica, de bandas, direis mesmo, de ruído nestas feitas do livro. Igualmente me parece que há um injustificado deslumbramento (dos novíssimos autores, tantos deles imberbes em matéria de literatura) em torno destes encontros. Mas vi o rosto feliz do Carlos Vaz Marques, ouvi uma ou outra conversa que me enriqueceu. E, sobretudo, comprei em alfarrabistas coisas que me estão no sangue – coisas antigas, da memória, vindas da memória das minhas primeiras idas a essa feira do livro de Lisboa de 1989/90. Sim, há qualquer coisa de romântico ainda nestas feiras: estar com um ou outro amigo, um ou outro editor. Ver livros que julgávamos desaparecidos. Comprei uma edição que já tinha do Alexandra Alpha, e ainda a edição da Moraes desse inescapável O Hóspede de Job. E um livro raro das Guerrilla Girls, um livro que os desventurados deste mundo sexista em que vivemos deveriam ler. Soberbas fotografias! Terrível sátira!
Este meu querido amigo que não quer ir a mais feiras terá a sua razão. Eu terei a minha. Por enquanto, e apesar do ruído que cada vez mais cresce nestas feiras (ruído mental, visual, além de outros), reservo-me o direito de ir onde mais importa: a esses alfarrabistas onde nos reencontramos com a literatura. Paraíso dos Livros (a BD esta ali toda!!), a Chaminé da Costa, a Snob! Livros velhos, dos bons. E edições novas, pouco frequentadas – isso está nas feiras! E se elogio os sebos, tal não quer dizer que nas editoras de agora o literário esteja ausente, nada disso. A Flanêur é excelente e na Exclamação há coisas a descobrir. E o mesmo se diga da conceituada Tinta-da-China, nas suas diversas coleções. Nesta comprei outros livros de enorme interesse sobre este nosso tempo. Livros de História. Mas nos alfarrabistas há, como disse, um quê de gostoso tempo antigo…
E com isto deixo a esse meu amigo uma nota final: ler no Verão, ir a feiras do livro, isso deve ser ainda um modo de resistir a esta época de rasura cultural. Concordo: a literatura parece ser muitas vezes o que menos importa nessas feiras. Temos de ensinar a ler mais e melhor. Ensinar a reler. Meu amigo, e que tal ir a essas feiras para visitar os alfarrábios? E já agora: longe da multidão que se passeia, se fores ao Porto, a essa belíssima feira, lembra-te: tens um Tomaz de Figueiredo ou um Ferreira de Castro ali perdidos. Nem trezentos anos de atraso mental e meio século de fascismo vencem os que amam os livros, as artes, a literatura – essa fiel dedicação à honra de estarmos vivos, não é assim?
Professor e crítico literário