Ou seja, lenha para se queimar era coisa que a Ozon não faltava à partida. Quando o cineasta evocou influência bressoniana para este filme em particular, temeu-se o pior, tantos já foram por aí e estatelaram-se. Mas Ozon foi à raiz do livro sem copiar ninguém. E mostrou em Veneza um filme convincente e seguro, protegido de qualquer retórica sentimental. A opção estética do preto e branco é aposta ganha, gera uma ambiência distante, espectral, que sugere a distância que separa Meursault do mundo, personagem tão actual ontem como hoje. Ozon fecha com Killing an Arab, uma das primeiras canções dos The Cure, influenciada na mesma fonte.
“É uma obra-prima, encarreguei-me de escrever e pedir pessoalmente ao Robert Smith que me deixasse usá-la nos créditos finais”, contou entretanto o cineasta em entrevista ao Observador. “A banda trata essa canção com um zelo muito particular. Durante longos anos, foi mal interpretada, usada por radicais xenófobos e extremistas que nunca leram Camus. Tentei que este filme voltasse a colocá-la no seu verdadeiro contexto.” De resto, é por causa da canção dos The Cure que L’Étranger não arranca com a celebérrima primeira frase do romance: “Aujourd’hui, maman est morte.” O filme começa de outra maneira: “J’ai tué un arabe.” Há uma ressonância forte nesta intenção “que fala dos dias que correm”, concluiu o realizador.
A House of Dynamite, em contraponto, correu mal a Kathryn Bigelow e é porventura o pior filme da autora de Estranhos Prazeres e Estado de Guerra. De tão altas que estavam, as expectativas levaram a esta queda sonante. Chegará em data a anunciar à grelha da Netflix sem que se saiba, por enquanto, qual será o seu percurso nas salas. Ideia do filme? Um míssil balístico intercontinental, com origem remota no Pacífico (alude-se diversas vezes à Coreia do Norte para evitar embaraços diplomáticos mais bicudos), desloca-se à velocidade de 6 km por segundo em direcção a Chicago, metrópole com 10 milhões de habitantes. Desloca-se tão rápido, que o GBI americano (Ground-Based Interceptor) não consegue travá-lo. E a América entra em pânico.
A catástrofe nuclear nunca chega a ter representação no ecrã — Bigelow prefere usá-la como estímulo e fonte de ansiedade em contagem decrescente (durante o percurso do míssil imparável), ficcionando com o rigor que se conhece à cineasta as reacções de diversas fontes de poder dos EUA. Acompanhamos essa diversidade de respostas nos poucos minutos que o país tem para reagir, do Ministério da Defesa à Stratcom (comando estratégico) do Centro de Operações de Emergência Presidencial à resposta do próprio Presidente (papel de Idris Elba).