Jim Jarmusch conquistou este sábado a 82.ª edição da Mostra e um dos prémios mais importantes do seu percurso, com um modelo de filme que não costuma de todo ser reconhecido nestas altas vitrines, muito menos a ouro no festival de cinema mais antigo do mundo. Como aqui se trouxe a seu tempo, Father Mother Sister Brother é feito de três histórias independentes e desiguais, contudo aproximadas por suaves cambiantes, rodadas em Nova Jérsia, Dublin, Paris e ancoradas em relações filiais pais-filhos. Pouco importa que não seja o melhor filme dele porque nem por isso deixou de agradar tanto e de subir o nível quando foi exibido — maus filmes, de resto, é coisa que Jim ainda está por fazer.
Nada a dizer deste lado, brinde-se à vitória do cineasta norte-americano com spritz-campari, quem sabe se em solo luso, já que Sara Driver (cineasta e companheira do cineasta) tem um projecto antigo em curso que está a desenvolver com a produtora Bando à Parte, de Rodrigo Areias. Mais tarde ou mais cedo voltará o casal a passar por Portugal. Jim anda agora encantado com o Porto, descoberta das suas visitas mais recentes.
Nestas crónicas, já se havia escrito que Cannes (a quem Jarmusch deve um palco internacional com 45 anos) não quis Father Mother Sister Brother. Em entrevista no Lido, o cineasta confirmou e detalhou o que aconteceu: “Eles queriam passar o filme, mas não ofereceram a Competição. Deram uma secção paralela. Eu não sou competitivo por natureza. Mas estava interessado que o filme pudesse ser visto pelo maior número de pessoas. Pesei depois o meu historial naquele festival e disse-lhes que achei a proposta… inapropriada. Foi esta a palavra usada. Não cederam, eu disse bye bye.” Às vezes, é preciso dizer bye bye na vida. Mal podia imaginar Jim que, quase quatro meses depois — e logo no ano da sua estreia em Veneza — teria um Leão de Ouro à espera.
E contudo, é provável que este prémio também tenha resultado da divisão de um júri que lidou em conflito (e os júris não servem para outra coisa) com The Voice of Hind Rajab. O filme que a imprensa anglo-saxónica (sobretudo essa) engalanou por antecipação contentou-se afinal com o Grande Prémio do Júri — e também há muito a aprender disto, porque é democrático discordar, os consensos são quase sempre sinal de fragilidade. Não é preciso ir à bruxa para entender que a obra causou seguramente dissensões profundas, levantando problemas éticos a que Kaouther Ben Hania não se esquivou, nomeadamente o do uso do áudio verídico de uma criança morta pela guerra em Gaza.
Com a calma cool que lhe é reconhecida, Jarmusch lá foi levando as coisas para lume mais brando na cerimónia, quando disse que estar em Veneza, “na cidade de Casanova, Vivaldi e Terence Hill”, também é perceber (e aqui ele citava Benny Safdie) que “a arte não tem que se dirigir directamente à política para se tornar política, pode engendrar uma conexão entre nós que é realmente o primeiro passo para as coisas se resolverem”. Um gentleman. E assim foi o ouro do filme tunisino com bandeira palestiniana para às mãos do oxigenado de Akron, Ohio. Realce-se que nem Jarmusch, nem ninguém na cerimónia, deixou de apelar à urgência do fim da guerra no Médio Oriente. Em boa verdade, não houve em Veneza outro assunto ao longo dos últimos 12 dias.
Recorde-se que o júri desta edição foi presidido pelo cineasta norte-americano Alexander Payne e formado pela italiana Maura Delpero, o francês Stéphane Brizé, o iraniano Mohammad Rasoulof, o romeno Cristian Mungiu (cineastas), bem como pelas actrizes Fernanda Torres (Brasil) e Zhao Tao (China).
Outra nota de felicidade surgiu com a chamada ao palmarés de Benny Safdie por The Smashing Machine. Os prémios de interpretação a Toni Servillo (por La Grazia, de Sorrentino) e Xin Zhilei (por The Sun Rises On Us All, filme do Cai Shangjun, o último da competição a ser mostrado), justificam-se pois não houve nada de transbordante nesta área. Sotto le Nuvole, de Gianfranco Rosi, também não fez sombra ao melhor do italiano, o que não o impede de ser um trabalho aturado e rigoroso de uma Nápoles milenar a ecoar ruidosamente no presente. Rosi acredita que a realidade se pode descascar como uma cebola, camada por camada, leve o tempo que levar (neste caso, três anos). Nova distinção para o italiano (que há 12 anos venceu Veneza por Sacro GRA), uma mais para o documentário.
François Ozon e Leonardo di Costanzo poderiam ter sido chamados ao palmarés mas, ainda assim, o ensemble é valioso e distinguiu o melhor que se viu a concurso no Lido, sem esquecer À pied d’oeuvre, de Valérie Donzelli, surpresa deste festival. Quanto aos desapontamentos, foram americanos, sobretudo no caso dos novos trabalhos de Kathryn Bigelow (A House of Dynamite) e Noah Baumbach (Jay Kelly). Curiosamente, dois filmes que vão chegar à grelha da Netflix sem garantias de uma estreia comercial nas salas.
VENEZA 2025 — Palmarés da 82ª edição:
LEÃO DE OURO
“Father Mother Sister Brother”, de Jim Jarmusch
(EUA/Itália/França/Irlanda)
GRANDE PRÉMIO DO JÚRI (LEÃO DE PRATA)
“The Voice of Hind Rajab”, de Kaouther Ben Hania
(Tunísia/França/EUA)
MELHOR REALIZAÇÃO (LEÃO DE PRATA)
Benny Safdie por “The Smashing Machine” (EUA)
PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI
“Sotto le Nuvole”, de Gianfranco Rosi (Itália)
MELHOR ARGUMENTO
Valérie Donzelli e Gilles Marchand por “À pied d’oeuvre”, de Valérie Donzelli
MELHOR ACTOR (TAÇA VOLPI)
Toni Servillo em “La Grazia”, de Paolo Sorrentino
(Itália)
MELHOR ACTRIZ (TAÇA VOLPI)
Xin Zhilei em “The Sun Rises On Us All”, de Cai Shangjun
(China)
PRÉMIO MARCELLO MASTROIANNI (MELHOR ACTOR OU ACTRIZ EMERGENTE)
Luna Wedler em “Silent Friend”, de Ildikó Enyedi
(Alemanha/França/Hungria)
PRÉMIO LEÃO DO FUTURO (MELHOR PRIMEIRA OBRA)
“Short Summer”, de Nastia Korkia
(Alemanha/França/Sérvia)
ORIZZONTI – MELHOR FILME
“El el Camino”, de David Pablos
(México)
ORIZZONTI – MELHOR REALIZAÇÃO
Anuparna Roy por “Songs of the Forgotten Trees”
(Índia)
ORIZZONTI – PRÉMIO ESPECIAL DO JÚRI
“Lost Land”, de Akio Fujimoto
(Japão/França/Malásia/Alemanha)
ORIZZONTI – MELHOR ACTOR
Giacomo Covi em “Un anno di scuola”, de Laura Samani
(Itália/França)
ORIZZONTI – MELHOR ACTRIZ
Benedetta Porcaroli em “Il rapimento di Arabella”, de Carolina Cavalli
(Itália)
O autor escreve segundo a antiga ortografia