CARLOS HELÍ DE ALMEIDA
Especial para o Estado de Minas

Annie Ernaux não frequenta as redes sociais. Mas a escritora francesa de 85 anos não precisa mais das plataformas virtuais para tomar conhecimento do alcance de sua obra, que supera 20 títulos, entre os jovens da França. 

No documentário “Écrire la vie”, que estreou na mostra “Giornate degli autori” do Festival de Veneza, encerrado neste sábado (6/9), a diretora Claire Simon registra discussões entre alunos de escolas secundaristas de diferentes regiões da França e da Guiana Francesa em torno dos textos da autora de romances como “O acontecimento” (2000) e “Os anos” (2008), e de como eles se conectam com suas próprias vidas. 

A escritora, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2022, não aparece em nenhum frame do documentário. Mas sua presença se faz nas referências a seus textos, que ela mesma descreveu como “simples, diretos e despojados de floreios dramáticos”, e de como estes, que falam de famílias problemáticas, experiências sexuais e maternidade, espelham a vivência de seus jovens leitores.

“Minha experiência com a leitura sempre foi solitária. Não tive a oportunidade de discutir os livros que lia com outros adultos. Fiquei fascinada com a espontaneidade com que os jovens discutem no documentário os temas de meus livros”, diz Annie, em rara aparição pública, nesta entrevista.

O que mais a surpreendeu no filme, que mostra jovens refletindo sobre as próprias experiências a partir de sua obra?

Não uso redes sociais, mas sei que os jovens usam muito as redes para mostrar coisas sobre eles mesmos, criando uma imagem que é completamente diferente da que eles realmente têm. No filme da Claire, você tem a impressão de que as redes sociais não existem para eles, mesmo que não tenham sido forçados a ignorá-las ou não terem dado razão para usá-las. Eles conversam e citam trechos dos meus livros, tudo sem a presença de um celular, como que procurando algo dentro de si que não sabiam que existia. Tive a sensação de que esses jovens não conhecem tudo sobre si mesmos.

Eles demonstram intimidade com toda a sua obra, e não apenas seus livros mais famosos…

Fiquei surpresa como os jovens do documentário são espontâneos em suas dúvidas e na troca de ideias com os colegas. Sei que, de certa forma, eles foram orientados por seus professores a criar essas discussões a partir dos meus livros, mas algo de novo, muito especial, aconteceu ali, que nunca tinha visto em outro campo: eles foram incentivados a levantar questões, a pensar nos temas com os quais se identificavam, a partir das histórias de meus romances, mas sem receber perguntas diretas. Todas as interações entre eles e as questões que levantam são geradas de forma orgânica.


Garota lê livro e sorri, ladeada por dois adolescentes, em cena do filme Ecrire la vie

No filme ‘Écrire la vie’, jovens estudantes conectam a própria vida à literatura de Annie Ernaux, escritora que ganhou o Prêmio Nobel em 2022 Be For Films/divulgação

Com quem a senhora conversava sobre os livros que admirava, quando jovem?

Nunca tive esse tipo de experiência quando adolescente, nunca fui convidada a falar sobre os livros que lia. Claro, algumas das minhas leituras tiveram impacto forte, profundo, em mim, mas nunca tive a oportunidade de discuti-las com um adulto. E isso é algo muito específico na minha vivência. Minha experiência de leitura sempre foi solitária. Talvez isso se deva à época em que cresci e ao meio social ao qual eu pertencia. Eu não tinha ninguém com quem conversar sobre minhas leituras. Eu não falava sobre isso com minha mãe, por exemplo, que também lia muito. Simplesmente dizíamos uma à outra algo como: “Este livro é ótimo, mesmo”. E ficava por isso mesmo.

Que sentimento lhe ocorre quando percebe que algo que a senhora escreveu e compartilhou em forma de livros tem impacto na forma de ver o mundo de outras pessoas, como os adolescentes do filme?

Quando escrevo, ou quando penso em escrever um livro, não tenho ideia de como ele será. Fico realmente procurando por algo que seja “certo”, “apropriado”. “Certo” é uma palavra muito importante para mim. As palavras são importantes porque elas devem mostrar o que sinto, o que vejo, e me guio por elas e então, de repente, o livro está terminado. É tudo muito estranho, muito bizarro para mim. Aí fico me perguntando: como isso aconteceu? Agora, o livro é um objeto que está fora de mim, ele está lá e será lido por homens e mulheres, e isso é algo maravilhoso. Sinto como se tivesse dado essas minhas experiências a outras pessoas. Mas, mesmo que reconheça o que escrevi e que está sendo discutido no filme da Claire, eu imediatamente me pergunto como tudo isso, essas experiências, esses livros, aconteceram. Pode parecer meio esotérico, mas é isso o que acontece, mesmo que sejam histórias de carne, de sangue e sentimentos.

A senhora já teve alguns livros adaptados por filmes. Chegou a codirigir um (o documentário “Les années super-8”, com o filho David Ernaux-Briot, em 2022). Qual a importância do cinema em sua vida?

Sou fascinada por filmes desde muito jovem. Mas não podia frequentar cinemas com frequência, por causa das condições financeiras da família. Era mais fácil ler livros. Mas sempre gostei de filmes. Lembro-me de ter visto “Os amantes” (1958), de Louis Malle, e todos os filmes da Nouvelle Vague, filmes que capturavam o tempo em que vivia quando era estudante. Lembro-me muito também de “Hiroshima, mon amour” (1959, de Alain Resnais). Percebia, à época, que havia um novo cinema, e pensava que deveria haver também uma nova literatura, e o “Nouveau roman” estava lá! Queria criar algo nesse contexto, quando jovem, mas não tive sucesso. Cheguei a escrever alguma coisa inspirada nessa corrente, mas foi rejeitado. Mas o cinema sempre foi muito importante para mim.

Importante a ponto de inspirar seus textos?

Sempre vejo alguma relação entre o que vejo em um filme e o que escrevo. Quando comecei a escrever “O lugar”, voltei a assistir a “La strada” (1954) com meus filhos, porque descobri que havia uma forte relação entre o filme de Federico Fellini com a história que eu estava prestes a desenvolver. Há uma espécie de realismo, de argúcia, nessa minha inspiração que acho interessante. Já estive muito interessada em “O baile” (1983), do Ettore Scola, porque é um filme que fala muito sobre a Segunda Guerra Mundial. Comecei a escrever meus livros falando de minha experiência pessoal naquele período. Então, tanto o cinema quanto a escrita são, para mim, duas formas, dois meios de expressão, muito importantes, embora sejam muito diferentes.