[RESUMO] Em julho, um mês antes da morte de Luis Fernando Verissimo, a Folha entrevistou Lúcia, esposa do escritor por 61 anos. Guardiã da memória da família, ela comenta como conheceu o marido e o inusitado pedido de casamento dele, relembra a convivência com o sogro, Erico, e as histórias da célebre casa da família em Porto Alegre e descreve a rotina dos últimos anos de Luis Fernando, fragilizado após um AVC em 2021.

Vinte dias antes de Luis Fernando Verissimo ser internado em um hospital de Porto Alegre, Lúcia Helena Verissimo deu uma longa entrevista à Folha.

Casada por 61 anos com o escritor, Lúcia, como é chamada por todos, contou histórias do marido, do casal, da família e da casa comprada por Erico e Mafalda Verissimo, seus sogros, para onde se mudou pouco depois de se casar e onde até hoje vive.

Com a morte de Luis Fernando Verissimo, aos 88 anos, na madrugada do último dia 30/8, ela passa a ser a principal guardiã da memória familiar. Aos 81 anos recém-completos (em 29 de julho), aparenta bem menos e demonstra estar com a cabeça tinindo.

Os três filhos do casal (Fernanda, Mariana e Pedro) tinham alertado a reportagem de que a mãe é uma espécie de acervo ambulante da família, o que foi comprovado na entrevista à parte com Lúcia, cuja eloquência é notável, tanto mais pelo contraste com a introspecção do marido.

Diferentemente dele, não tem o hábito de escrever, e lamenta não ter colocado no papel tantas memórias. Provocada pelo repórter a fazê-lo, disse: Tem bastante coisa”.

Carioca, Lúcia estudou no tradicional colégio Pedro 2º, no Rio, onde foi colega do novelista Gilberto Braga e do jornalista Maurício Kubrusly. Em 1963, frequentava as aulas pela manhã, e à tarde trabalhava como datilógrafa na Câmara de Comércio do Rio, onde conheceu seu futuro marido. “O Luis Fernando estava fazendo o jornal deles, cuidando da tradução para o inglês”, conta.

Após um namoro-relâmpago, veio o pedido de casamento, numa história que ficaria famosa, até porque foi contada por Erico em suas memórias, “Solo de Clarineta”. “Um dia nosso filho chamou-a (contou-nos a nora mais tarde) e ela imaginou que fosse para passar-lhe um pito por causa de algum trabalho mal-feito [no escritório onde ambos trabalhavam]”, relatou o pai.

“Luis Fernando disse-lhe apenas: ‘Vamos sair’. Ganharam a rua, caminharam algumas quadras em silêncio, fizeram alto à frente da vitrina duma casa de joias e, apontando para uma coleção de alianças, o rapaz perguntou à colega: ‘Estás vendo aquele anel ali? Te dou cinco minutos para resolver. Queres ou não casar comigo?’. Lúcia aproveitou apenas uns quatro ou cinco segundos, dos trezentos que Luis Fernando lhe concedera, e respondeu: ‘Quero’. Deram-se os braços, entraram num botequim e beberam uma Coca-Cola para comemorar o acontecimento.”

Casaram-se em março de 1964, ele com 27 anos, ela com 19.

A entrevista com Lúcia, realizada em 22 de julho, subsidiou uma reportagem sobre a saga dos Verissimos, sobretudo Erico e Luis Fernando, dois dos escritores mais importantes do país, publicada em 16 de agosto.

Apenas uma parte ínfima da conversa, porém, foi aproveitada na ocasião. Leia os principais trechos ainda inéditos.

Procede a história dos cinco minutos que o Verissimo te deu para decidir se aceitava o pedido de casamento dele?

Deu cinco minutos, aí nós nos casamos e eu brincava sempre com ele, eu te dei o golpe em 64, e ele dizia, a ditadura continua lá em casa até hoje. Nós nos casamos em março de 64 [às vésperas do golpe militar].

Vocês se conheceram na Câmara de Comércio em 63?

Isso, início de 63.

Então foi menos de um ano de namoro.

Sim, e o Luis Fernando tinha ido pro Rio em 62. Porque, na verdade, o plano dele era ir embora do Brasil pra Inglaterra. Ele parou ali no Rio, foi trabalhar com um empresário americano para ganhar um dinheiro e ir embora pra Inglaterra.

Fazer o quê?

Acho que era alguma coisa ligada a cinema, não lembro bem o que tinha de concreto pra ele querer ir pra lá. Mas ele estava parando no Rio, ele morava na época com uma tia chamada Lucinda (que é o nome da nossa neta), Lucinda Martins, que tinha sido casada com o Justino Martins, que foi um grande jornalista da [revista] Manchete.

E aí, pelo casamento, a senhora acabou desistindo de fazer a faculdade de serviço social.

É. Eu quase me matriculei na assistência social, que era o que eu ia fazer. Aí acabamos casando e logo um ano depois, um ano e pouco depois, a gente veio pra Porto Alegre. Teria sido a minha escolha.

A senhora também se interessava muito por história, não?

Eu gosto muito de história de família.

Chama muito a atenção o fato de a casa ser meio um personagem das obras [de Erico e Luis Fernando], de como isso se entranhou nas obras e nas vidas da família. Como é que a senhora vê isso?

Eu peguei a partir de 1966, porque nós casamos no Rio em 64, aí a Fernanda nasceu em 65 e agora no fim de julho vão fazer quase 60 anos que eu estou morando aqui.

Eles [Erico e Mafalda] moravam aqui desde 1941. Então eu entrei numa casa pronta. Toda a vida tive uma relação maravilhosa com o meu sogro. Consegui ter o privilégio de conviver com ele ainda por quase dez anos, de 66 até 75, quando ele faleceu. Numa boa. Dona Mafalda depois até os 90 dela também, a gente na mesma casa, com uma relação bastante harmoniosa.

Então, você viu, não é uma casa que tenha luxo, por exemplo, mas é uma casa cheia de memórias, objetos, desenhos. Cheguei aqui numa casa pronta, aos pouquinhos alguma coisa nossa foi acrescida.

O seu Erico toda a vida achava engraçado eu chamá-lo de seu Erico, me chamava de dona Lúcia Helena, porque ele insistiu para eu chamá-lo por você e eu não conseguia, nunca consegui.

Aí ele, para descontar, chamava dona Lúcia Helena.

Dona Lúcia Helena, o nome completo, porque geralmente o pessoal me chama de Lúcia. Toda vida ele recebeu muita gente aqui. Entravam alunos, baixavam ônibus de colégio, percorriam a casa, entrevistavam, tiravam foto. Você ainda hoje tem muito motorista de táxi, não Uber, mas de táxi antigo, que se você falar em casa do Erico Verissimo, eles sabem direitinho, “Ah, a casa do Erico, agora do Luis Fernando”. Geralmente é uma pessoa um pouco mais velha.

Teve uma vez uma coisa comovente, um casal do Ceará estava tirando fotos da frente da casa. Eu cheguei, eles explicaram, ‘Ah, nos disseram que era a casa do Erico Veríssimo’. Aí eu disse, “Então entrem, vão ver a sala dele ali”. Quando a moça chegou na porta do escritório, começou a chorar. Ela disse, “Eu estou muito comovida porque o nome dos meus irmãos veio dos personagens do Erico, meus pais eram encantados pelo Erico”.

Como foi crescer, desenvolver uma vida, criar filhos numa casa que era sempre lotada de gente leitores, admiradores, amigos?

Era uma casa alegre, com muito movimento. Aos sábados, havia sempre um encontro dos amigos mais chegados na casa do melhor amigo do Erico, que era o Maurício Rosenblatt, avô do Arthur Nestrovski [músico, crítico e ex-diretor artístico da Osesp]. E aos domingos era aqui. Então sempre tinha movimento. Pena que naquela época a gente não tinha celular pra [registrar]… mas quanta gente conhecida, quanta gente famosa eu vi entrar aqui.

Por exemplo?

Ah, o Ulysses Guimarães, o Paulo Brossard, o Lula veio aqui, mas eu não estava, estava no Rio. Mas veio aqui fazer uma visita ao Luis Fernando e tudo. Ciro Gomes, escritores, o Saramago tem uma foto muito boa tirada com a minha sogra. A gente brincava com ela e dizia, “A senhora nunca quer tirar fotografia conosco, porque que tirou com o Saramago?”. [E ela:] “Sim, porque vocês não são prêmio Nobel, né?”

Diz que o Vinicius de Moraes também esteve, tem uma história de um copo…

Ah sim, o copo do Vinicius… Numa das vezes em que esteve aqui, o Vinicius veio com um copo na mão, e a gente não tinha percebido isso. De repente apareceu um copo aqui que era do hotel Everest, aqui em Porto Alegre. A conclusão foi que era o uísque que o Vinicius tinha vindo bebendo do hotel. O copo ficou muito tempo aqui e depois acabou quebrando, infelizmente. Era uma lembrança do Vinicius. Chico Buarque, Chico… Ah meu Deus do céu, muita gente.

O Luis Fernando herdou do Erico a coisa de escrever na toca [escritório no subsolo da casa], né? Ele também fazia a mesma coisa do pai de escrever na toca e usar o escritório de cima para revisar, refletir?Não, eram dois espaços diferentes. O Erico tinha um pequeno, que hoje até a Fernanda [filha] que está trabalhando lá, e o Luis Fernando era um espaço maior. Mas era ao lado, eram peças coladas. Aí, o Luis Fernando ficava lá no escritório dele, tinha uma rotina de trabalho, nós não víamos nada do que ele escrevia, ele não mostrava. Ele trabalhava o tempo todo lá embaixo, não tinha nada aqui em cima.

Mas só que o Luis Fernando durante muitos anos não trabalhava lá embaixo porque ele fazia um bom tempo dele na MPM Propaganda. Ele trabalhava muito, saía daqui de manhã, deixava as crianças na escola, no Instituto de Educação, subia uma rua chamada Santo Antônio, até a MPM Publicidade, onde ele começou a trabalhar em 69, se não me engano.

Ele fazia o turno da manhã, almoçava em casa e voltava pra MPM. Às cinco da tarde, seis, ele ia pro jornal. Ele fez muita coisa no jornal, internacional, futebol, horóscopo…

Isso era na Folha da Manhã [diário gaúcho homônimo do paulistano embrião da Folha]?

Não, era na Zero Hora, na rua Sete de Setembro. A Folha da Manhã foi num período em que ele saiu da Zero Hora junto com um amigo querido nosso que se foi agora, o Ruy Carlos Ostermann. Ficou lá um tempo, o Ruy saiu, a turma toda que foi junto com o Ruy saiu, e aí o Luis Fernando foi convidado a voltar pra Zero Hora. Se não me engano, foi em 75.

Ele trabalhou quase 20 anos lá em publicidade, fazendo redação, né? Ganhou vários prêmios até, muita coisa, muito prêmio. A gente ia a São Paulo para ele receber os prêmios. Ele deixou de ir na MPM porque disse que não queria mais fazer aquele horário certinho e tudo, então ele ficou trabalhando em casa. Mas, nos últimos anos da MPM, ele continuou ligado à agência, então quando queriam alguma coisa diferente, ele fazia, mas aí não era mais funcionário.

Mas ele trabalhava na parte debaixo da casa, pronto. Ele não trabalhava nada aqui em cima. Todo o espaço dele de música, ele tinha o próprio som dele lá embaixo e nunca trabalhou com música de fundo. Seu Erico trabalhava com música de fundo, quando fazia as correções, ele estava sempre ouvindo música.

Sempre foi uma casa muito musical, né?

Sempre, sempre. Aqui as crianças foram criadas ouvindo música clássica, Villa Lobos, Vivaldi, Carl Orff… As crianças ouviam tudo, porque toda a casa tinha que ouvir, porque era em alto volume. Às vezes até o vizinho do lado dizia assim, “Hoje tava boa a seleção, hein, seu Erico?”. Porque a música também chegava no vizinho. O vizinho se divertia.

E o Luis Fernando então usou o escritório de cima mais pra dar entrevista e tal?

Isso, exatamente. Esse filme agora que o Defante [Angelo Defanti, diretor do documentário “Verissimo”] fez mostra bem ali embaixo a ligação dele com a janela, com o pátio que a gente tem aqui. Mas o trabalho dele era feito na parte de baixo da casa, não trazia nada cá pra cima.

Pelo que teus filhos falam, e confirmo agora, a senhora é a memória mais afiada da família, quer dizer, um acervo da família…

Olha, pode ser um acervo, mas eles dizem… O Luis Fernando, dizem que ele não fala nada. Agora nos últimos anos, ele dizia que eu não dava tempo. “Não é que eu não fale, ela que não me deixa falar, ela não dá tempo” [risos].

Eu gostei sempre desse movimento da casa, até depois dos filhos mesmo. Agora a Mariana [filha do meio] tá morando em São Paulo, mas a gente sempre tinha a garotada deles aqui, um ou outro pra almoçar, pra se encontrar aqui na casa, fazer festa. Tem a churrasqueira lá embaixo que mandei fazer, porque quando eles eram adolescentes, eu preferia que fizessem as festas aqui, que o bem ou o mal a gente estava de olho, né?

A senhora escreveu ou escreve diários ou registros dessas memórias?

Não, não.

Já pensou em colocar isso no papel de algum modo?

Não, até lamento não ter feito isso, por exemplo, com relação a muitas viagens que a gente fez, lugares onde a gente foi, que viajamos bastante, graças a Deus. Desde 71 a gente sai viajando, que era o que gostávamos de fazer.

Aquelas experiências três vezes que fizemos com os filhos, em 80 em Nova York, 86 em Roma, 90 em Paris. Tudo isso era maravilhoso, foram experiências fantásticas. Mas eu nunca tomei nota, não me dei… Lamento até, sabe? Até pra lembrar…

Foram pequenas temporadas morando nessas cidades?

Sim. Nova York a gente foi em 80. As crianças trancaram matrícula na escola aqui, nós alugamos um apartamento mobiliado em Nova York, na esquina da rua 74, com a 3ª Avenida. Ficamos lá acho que uns sete ou oito meses. Aí quando o dinheiro acabou, voltamos. Eu me lembro que o trabalho do Luis Fernando era mandado pelo malote da Varig, na 5ª Avenida, a gente ia até lá, onde tinha o escritório da Varig, e ele mandava o texto dele pelo malote.

Em 86, nós ficamos uns oito meses em Roma. Viajamos muito de carro com eles pela Itália e tudo mais. E depois em Paris ficamos quase um ano, uns dez meses, também num apartamento alugado, mobiliado.

Muito bom o apartamento, perto do Halles. Ali era uma zona, e a gente brincava, porque se saísse pra direita, você tava numa rua que é a Montorgueil, uma rua famosa por ter um comércio de alimentos. E se virasse pra esquerda, tu dava no puteiro, que era na rue Saint-Denis, era a zona. Às sete da noite, as gurias estavam todas na rua. Ah, vai pra direita ou vai pra esquerda? Era divertido.

No nosso prédio, uma lembrança também que era boa, nosso apartamento dava exatamente pra frente da redação do Nouvelle Observateur, a gente via o pessoal na Redação trabalhando. Eu dizia pro Luis Fernando, olha aí, não tá com saudade de Redação?…

Acho que esse é um outro traço que une o pai e o filho, né? O Erico também gostava muito de viajar, né? Ele [Erico] usava até uma expressão muito interessante, ele dizia que tinha fome geográfica. Ele atribuía ao avô tropeiro. E o Luis Fernando também gostava muito, acho que acabou herdando isso, né?

É, com certeza. A gente viajou muito, num determinado momento em que as coisas para nós ficaram um pouco mais fáceis e tudo, a gente certamente viajava duas vezes por ano, ia para a Europa, fazíamos viagens muito bonitas, alugava carro, ficava zanzando.

E essas temporadas com os filhos, também a gente alugava um carro, saía passeando com eles.

Além das viagens pelo Brasil… A senhora ia com ele em muitas viagens para festivais literários, né?

Sim, sim, para encontros, feira de livros. Tem uma história que eu gosto e a gente adorava porque todas as vezes esses encontros no interior de outros estados, as viagens pra cidades pequenininhas eram sempre uma coisa muito afetuosa, muito carinhosa, que sempre valia a pena.

Uma vez fomos pra uma feira numa cidade chamada Ituiutaba (MG), perto de Uberlândia. Aí eu disse, “Mas Luis Fernando, como é que a gente chega em Ituiutaba?. Ah não, me disseram que a gente pega um ônibus, desce em Belo Horizonte, e de Belo Horizonte vai até Uberlândia, onde em Uberlândia vai ter um carro nos esperando”.

Bom, fizemos tudo isso, né? E fomos parar em Ituiutaba. A feira era uma maravilha, bem pequenininha, mas tinha faixas, “Bem-vindos a Ituiutaba”. Era uma maravilha, a gente passeava e a moça que nos acompanhava dizia assim, “Aqui é o senhor fulano, é o dono da farmácia, aqui é o sicrano, do armazém”, ou seja, uma maravilha a cidade. Isso é o que vale, né? Quanto lugar a gente andou, meu Deus.

O Luis Fernando tá meio fora de combate aí, tá com uns problemas de saúde, imagino que isso te faça muita falta.

Ah, com certeza. Me dá muita pena.

Depois do AVC, dizem que as primeiras palavras que ele começou a falar foram em inglês, quando ele voltou.

Isso, isso.

Ele foi alfabetizado em inglês ou em português?

Não, em inglês. Ele saiu daqui… Ele teve umas aulas com uma professora, uma senhora longeva, inclusive, que deu algumas aulas pra ele antes, ele começou a se alfabetizar. Mas escola mesmo, escola que ele foi, que não sabia falar nada [em inglês], era uma escola americana. Foi em Los Angeles ou São Francisco…

Acho que com seis pra sete anos, né?

É, eles foram… ele nasceu em 36, eles foram a primeira vez [em 1943] e passaram parte da Segunda Guerra lá, o seu Erico contava que ele [Luis Fernando] matava japonês adoidado [nas brincadeiras]. Ele tinha 6, 7 anos, e foi alfabetizado numa escola [americana].

Tem outra historinha que o seu Erico contava, que ele foi levado pela professora de volta pra casa. Porque, além da timidez ele não sabia [falar direito inglês], ele não conseguiu pedir pra ir ao banheiro. Chegou em casa, coitado, num constrangimento, com a calça toda molhada…

Quer dizer, ele tinha começado a ser alfabetizado em casa, no Brasil, em português, e meio que emendou a alfabetização com o inglês. É como se as coisas tivessem se entrelaçado…

Exatamente. Tanto que até os neurologistas meio que falavam que, no fundo, o seu cérebro vai buscar recursos para você conseguir se comunicar. Até hoje, de vez em quando, os rapazes que ficam com ele aqui, é muito engraçado. Eles dizem… “Stop. No. Thank you, my friend”. Eu digo pros rapazes, vocês estão aprendendo inglês [risos].

Porque ele ainda fala essas palavras de vez em quando, é isso?

Soltas, “yeah, yeah”. “Thank you, thank you.” “Stop.” São palavras. Não chega a fazer uma frase, mas a palavra é em inglês.

O Luis Fernando nunca foi de falar muito, mas agora ele não está falando mesmo, quer dizer, tirando essas coisas soltas e tal. Vocês desenvolveram algum método para estabelecer alguma comunicação com ele?

A gente acaba sabendo, é movimento com as mãos… tem umas coisas que, por isso que eu digo, a gente não pode avaliar, não se sabe nada do cérebro, nada.

Estávamos uma vez sentados assistindo à televisão, vendo no canal Curta! uma entrevista do Paulo César Pinheiro, de quem ele gosta muito. Aí tem um determinado momento em que o Paulo César diz assim: “Eu tive a sorte de conhecer o Pixinguinha, num bar, e um amigo do Pixinguinha tava falando mal da bebida, que ninguém devia beber álcool, porque o álcool era nocivo”.

E eu achei que o Luis Fernando não estava prestando atenção. Tava olhando ali, mas sem prestar atenção. De repente, o Paulo César falou o seguinte. “Aí o Pixinguinha disse a seguinte frase: ‘O álcool só é nocivo pra quem é mau caráter.” Luis Fernando deu uma gargalhada.

Foi na hora certa, ele entendeu o que Paulo César estava dizendo. Vou te dizer mais, poderia ser uma frase feita por ele até, um tipo de frase que ele poderia ter dito e ele estava acompanhando direitinho. Vai você saber…

Que coisa…

Ele deu a risada na hora certa. Paulo César Pinheiro tem uma música chamada “Última Forma”, né? Essa música tem uma frase que diz assim, “você foi o castigo que Deus me deu”. É uma frase do samba, tá? E quando eu brigava com ele, eu perdia a paciência, ele não cantava a letra, ele não dizia a letra, mas ele cantava a melodia. “Larararara.” Tava rindo, né? Tava rindo. Não dizia a letra porque ele não era bobo, né?

Aí ia ter que levar outro pito…

Exatamente. Isso eu te contei do Paulo César e do Pixinguinha porque ele estava acompanhando. Ele riu na hora certa.

E às vezes ele pede as coisas com as mãos, com o olhar?

Sim, sim. Já não falava muito, mas ele até chegou um dia a dizer [quando ainda conseguia articular umas poucas frases], “Eu não falava porque eu não queria, agora eu não falo porque não posso”.

A gente lamenta muito que ele não quis fazer fonoaudiologia. Não colaborava, o que foi uma pena, a impressão que me dava é que ele achava que era coisa de criança, uma coisa infantil.

Hoje ele faz o quê? Tipo fisioterapia?

Faz fisioterapia três vezes por semana. A gente vê televisão, ele vê GloboNews, vê o Jornal Nacional direitinho, olha o relógio, oito e meia, que é quando começa o jornal, aí ouve o jornal. Pra te dizer a verdade, eu não sei quanto que ele tá… Mas ele pega a Zero Hora de manhã e folheia ali com bastante atenção.

Vê jogos de futebol, especialmente quando tem campeonato europeu, aqueles jogos bons. E jogos do Inter [Internacional, time do escritor]. Às vezes vê a Osesp na Cultura. E [ouve] muita música no computador.

Você viu ali naquela sala, nós trouxemos pra cima o computador dele, né? E ele fica ali ouvindo muito tempo, muito tempo. Bastante coisa. Ele mesmo controla ali e tudo, e vai ouvindo. A música é muito importante.

Os 90 anos dele estão chegando, ano que vem. Vocês estão preparando alguma festança, alguma coisa? Não, vamos ver como é que o barco tá andando. A Fernanda, o Pedro, a Mariana [os filhos] estão levantando a obra dele e tudo mais, né? Mas não tem plano não. Vamos vivendo cada dia.