A leitura do primeiro capítulo do ótimo livro “Escrever é humano” (Companhia das Letras), de Sérgio Rodrigues, me levou a uma das mais fantásticas criações da música brasileira, “Rugas”, de Nelson Cavaquinho, Ary Monteiro e Augusto Garcez.
É que o tal capítulo — Viva a literatura, morra o clichê! — trata, como indica o título, de uma das maiores pragras da criação artística, o lugar-comum, a frase feita, aquela muleta a que tantos autores recorrem.
Incapazes de serem originais, de descreverem, com objetividade e/ou lirismo alguma situação, muitos optam por frases que estamos carecas de conhecer (olha o clichê aí, gente!). E tome de fazer das tripas coração, de alguém visivelmente nervoso (como seria um nervoso invisível?), da garota suando em bicas, de mal-traçadas linhas. No livro, que também serve de guia para quem deseja escrever de maneira profissional, o Sérgio dá ótimos exemplos e dicas.
Mas voltemos a “Rugas”. O samba é curtinho, tem apenas 14 versos. Nele, o narrador, no melhor estilo que celebrizou Nelson Cavaquinho, enumera suas tantas dores: se for pensar muito na vida vai morrer cedo, seu peito é forte, acumula tanta dor, as rugas fizeram residência no seu rosto.
Na segunda estrofe, usa um clichê — “olhos rasos d’água” — que só é admissível pelo que vem depois. Ele diz fingir-se alegre, pro seu pranto ninguém ver. Faltava então a conclusão.
O verso seguinte encaminhou tudo para o óbvio: começa com “Feliz aquele que sabe” —era previsível que a palavra seguinte seria “viver”. Quantas vezes não ouvimos — e, admitamos, falamos — que é fundamental saber viver, equilibrar perdas e danos, entubar desaforos e decepções, dar a volta por cima, ficar pronto pra outra?
Só que estamos aqui tratando de algo primoroso, de um samba que tanto se insere no contexto de um povo que encontrou na música sua melhor forma de expressão. Os compositores construíram então algo compatível com a jogada do gol que Pelé não fez contra o Uruguai na Copa de 70, o até hoje inacreditável drible de corpo que ele deu no goleiro Mazurkiewicz.
Ao receber um passe de Tostão, o maior de todos não faz o óbvio, não toca na bola, deixa que ela corra à esquerda do goleiro enquanto segue pelo outro lado, passa por trás do adversário e conclui a jogada às suas costas: “(…) o drible de Pelé em Mazurkiewicz quebrou a espinha do destino e o mundo degringolou”, narra o mesmo Sérgio Rodrigues em seu romance ‘O drible’. A bola não entrou, mas o lance permanece como um dos mais espetaculares da história do futebol.
Foi isso que Nelson, Ary e Augusto fizeram, fazem com todos nós cada vez que ouvimos “Rugas”. Nos aplicam aquele que ficaria conhecido como drible da vaca. Concluem o tal verso com um verbo inesperado: “Feliz aquele que sabe sofrer”. Sofrer é aqui, de maneira improvável, equiparado à ideia de felicidade, de capacidade de lidar com o contraditório da vida, com suas armardilhas.
Como Pelé, foram cruéis, nos fizeram de Mazurkiewicz, nos induziram ao erro, fingiram que recorreriam ao lugar-comum. E nos supreenderam, nos encantaram, riram da nossa cara, do nosso espanto. Ainda nos fizeram pensar nas tantas vezes em que não soubemos sofrer e, portanto, não fomos felizes. Melhor: diferentemente do rei de todos os estádios — brilhante definição de Waldyr Amaral que viraria lugar-comum — eles ainda marcaram o gol.