Encontrar uma pintura por atribuir ao fazer o inventário de uma mansão parisiense não será pouco comum, mas descobrir, depois, que o seu autor é um dos mestres do barroco, o flamengo Peter Paul Rubens, já entra na categoria do “raríssimo”.

Foi precisamente isso que aconteceu, conta a Agência France Presse (AFP), com o Cristo na Cruz (1613) que a casa de leilões Osenat vai levar à praça a 30 de Novembro, em Fontainebleau, a 70 km de Paris. Jean-Pierre Osenat, o presidente da leiloeira, estava a fazer o levantamento do recheio de uma casa parisiense, em Setembro do ano passado, quando se deparou com a pintura com 105x72cm que hoje diz ser uma “obra-prima”.

Garantiu Osenat à AFP que a obra redescoberta “foi pintada por Rubens no auge do seu talento e autenticada pelo professor Nils Büttner”, especialista em arte antiga alemã, flamenga e holandesa, presidente do Rubenianum, uma organização sediada em Antuérpia que tem por objectivo produzir e divulgar conhecimento sobre a arte dos Países Baixos dos séculos XVI e XVII, em particular a de Peter Paul Rubens (1577-1640), Anthony van Dyck (1599-1641) e Jacob Jordaens (1593-1678).

“Eu estava no jardim [da antiga casa-atelier] de Rubens, a dar voltas enquanto o comité de especialistas deliberava sobre a autenticidade do quadro, quando me chamaram para dizer ‘Jean-Pierre, temos um novo Rubens!'”, contou o leiloeiro.




Cristo na Cruz (1613) terá sido executada para um coleccionador privado no auge da carreira de Peter Paul Rubens.
Cortesia: Leiloeira Osenat/Facebook

Na obra, que se encontra em “muito bom estado” de conservação, o corpo de Cristo surge iluminado sob um céu escuro que parece anunciar uma tempestade. O rosto, como seria de esperar, evidencia dor e o sangue escorre-lhe das mãos, dos pés e de um dos flancos, onde, segundo a tradição cristã, um soldado romano espetou uma lança para ver se Jesus estava ainda vivo. No canto inferior esquerdo há rochas e vegetação, evocando o Gólgota, monte onde foi crucificado e sepultado, no superior uma abertura nas nuvens cujo significado não nos atrevemos a tentar decifrar, e no canto inferior direito está Jerusalém.

“É o começo da pintura barroca”, resume Jean-Pierre Osenat. “É uma descoberta extremamente rara e incrível, que marcará a minha carreira como leiloeiro.”

Embora Rubens tenha tido muitas encomendas para edifícios públicos civis e religiosos, os historiadores de arte acreditam que a pintura recém-identificada terá sido feita para um coleccionador privado, cujo nome ainda se desconhece.

Antes de ser autenticada, a obra que pertenceu a William Bouguereau, pintor do século XIX de cujas mãos saiu para as da família dona da mansão onde Osenat a encontrou, foi sujeita a uma completa perícia técnica, escreve a revista belga The Brussels Times, que também tem um site de notícias actualizado diariamente. O processo, moroso, envolveu exames de imagem (de raio-X e outros) e a análise laboratorial de pigmentos, tendo os historiadores de arte começado por lhe seguir o rasto a partir de uma gravura de época.

Esta pintura “é uma verdadeira profissão de fé e representa um tema predilecto de Rubens”, acrescentou Osenat, aqui citado pelo jornal Le Parisien. O artista, que teve um pai protestante, foi educado como católico pela mãe e o seu percurso não pode dissociar-se da sua ligação à Igreja.

Representado em algumas das melhores pinacotecas do mundo, incluindo o Museu do Prado, em Madrid, ou a National Gallery de Londres, e ainda como muitas obras in situ, em catedrais e igrejas, Rubens é tido como um dos expoentes máximos da pintura barroca.


As suas “pinceladas fluidas e sinuosas”, assim as descreve a historiadora de arte grega Euphrosyne Doxiadis, são postas ao serviço de uma pintura que tanto representa as mais populares cenas bíblicas, como os mais difundidos episódios da mitologia clássica, carregados de deuses, heróis e ninfas, isto com uma exuberância que se reflecte na cor, nas formas e na intensidade das emoções que faz chegar ao espectador.

A sua vasta lista de obras inclui Descida da Cruz (1614), parte de um impressionante tríptico da Catedral de Nossa Senhora de Antuérpia, que tem inúmeras pinturas do artista; Desembarque em Marselha (1622-25), registo da chegada à cidade da poderosa banqueira Maria de Médicis; O Massacre dos Inocentes (1611-12), hoje na Galeria de Arte de Ontário (Canadá); Prometeu Acorrentado (1611-12), do Museu de Arte de Filadélfia (EUA); ou As Três Graças (1630-35), que permaneceu na colecção do artista até ao fim da sua vida e que foi depois comprado pelo rei Filipe IV de Espanha e está em exposição no Prado.

O pintor fez inúmeras representações do calvário, com Cristo na cruz ou a ser dela descido. Uma das mais importantes consta de um tríptico que se encontra na Catedral de Nossa Senhora de Anvers (Bélgica), conhecido como A Elevação da Cruz.