Talvez não tenhamos reparado nele em Cor-de-Margarida, a estreia de Capicua na literatura para a infância, mas o caracol que agora protagoniza o seu novo livro já por lá se escondia. Regressa mais velho e cansado, longe da energia de outros tempos, e atreve-se a colocar a pergunta que dá título à obra: Como é que um caracol foge de casa? A resposta é uma fábula bem-humorada sobre a crise da habitação. O lançamento está marcado para 20 de Setembro, às 11.00, na Casa do Jardim da Estrela. Antes, conversámos com a rapper e escritora, que quer pôr as famílias a reflectir não só sobre o significado de ter casa, pertencer e cuidar, mas também sobre a importância da consciência de classe. “Muitas vezes queixamo-nos de barriga cheia sobre os nossos problemas de primeiro mundo.”
Não restam dúvidas de que o seu trabalho é um megafone para as suas causas, ou que o universo natural ocupa um lugar privilegiado no seu imaginário. Afinal, além de se focar numa das grandes questões da actualidade, Ana Matos Fernandes, mais conhecida por Capicua, transporta-nos novamente para o meio da natureza. O nosso guia é um caracol farto de andar de casa às costas, já a um passo de aderir ao partido das lesmas. Mas, porque não é todos os dias que se toma uma decisão tão radical, lá opta por ir de férias. É nessa viagem, do campo à costa, que se abordam vários quesitos do problema da habitação, desde a dificuldade que é ter “toca própria” – como sonha uma certa toupeira, que gostava de sair de casa dos pais e constituir família – à maçada que é manter uma habitação em boas condições – como se queixa uma aranha, cuja teia está sempre a ser abalroada.
Nuvem de LetrasComo é que um caracol foge de casa?, de Capicua (texto) e Matilde Horta (ilustração)
“Fui rascunhando a ideia na minha cabeça, mas a escrita foi relativamente intuitiva. Apesar de a prosa não ser o meu habitat natural, gostei muito de explorar os diálogos”, revela Capicua. Entre expressões como “ora, cebolas!” – ecos da oralidade portuguesa adaptados à realidade da horta – e o jeito pedinchão do caracol, o que salta à vista, sugere, é a dinâmica de confronto. “A exasperação dos outros animais, que estão ali a aturar um caracol carente quando têm problemas a sério para resolver, cria uma tensão que achei muito engraçada e que me deu gozo trabalhar”, diz. “Procuro sempre abordar temas profundos de forma leve e irónica, recorrendo ao imaginário infantil, que está muito associado às plantas e aos animais.”
Por outro lado, diz-nos, procura não “apatetar” e faz mesmo questão de usar palavras desafiantes, como “desaustinada”, “chorrilho”, “resoluto” ou “ziguezagueante”. “Quando escrevi o primeiro disco-livro do Mão Verde, em 2016, ainda não era mãe e preocupei-me bastante em ser acessível. Depois apercebi-me, nos concertos ao vivo, que era precisamente nos momentos em que eu fazia referências mais complexas, ou em teoria menos apropriadas à idade, que as crianças ficavam mais intrigadas. E depois com a maternidade descobri que, de facto, simplificar a linguagem é muito desinteressante porque elimina logo a possibilidade de haver uma série de questões e de dúvidas, que são aquelas que vão estimular a curiosidade e a conversa.”
Como é que um caracol foge de casa?, de Capicua e Matilde Horta (Nuvem de Letras. 48 pp. 14,95€).
O desejo de Capicua para este novo livro – que acredita ter “camadas para crianças de idades diferentes, mas também para os próprios pais, que são muitas vezes os leitores” – é precisamente promover o diálogo e o pensamento. “Essa é sempre a minha maior vontade, até porque esses são os livros que sobrevivem melhor ao tempo. Se depois de o fechar, não houver mais nada para explorar, ou para pensar, é uma perda de oportunidade. Penso que tenho vindo a trabalhar cada vez mais esse eixo individual-colectivo que é o reflectirmos sobre as nossas próprias angústias mas dentro do contexto em que vivemos e do mundo que nos rodeia. E acho que a literatura é de facto uma ferramenta incrível para que as crianças pensem pela sua própria cabeça e os adultos possam iniciar conversas sobre certas questões de uma forma lúdica.”
Nenhuma criança deveria preocupar-se com ter ou não um tecto. Mas, como se costuma dizer, de pequenino é que se torce o pepino, e a verdade é que a instabilidade residencial está associada a uma redução significativa no desempenho cognitivo até aos dez anos, como conclui um estudo recente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto. “Eu realizei o sonho da casa própria há muito pouco tempo – ainda nem vivo lá porque está em obras –, mas é cada vez mais uma miragem num contexto em que os jovens, e até pessoas já não tão jovens assim, na casa dos 30 e muitos, não conseguem concretizar. Não só por causa dos preços das habitações, mas também da precariedade e dos baixos salários que temos, que impedem muita gente de sair de casa dos pais, de deixar de partilhar casa em modo república de estudantes ou até de se divorciar.”
Como é que um caracol foge de casa?, de Capicua e Matilde Horta (Nuvem de Letras. 48 pp. 14,95€).
No livro, o caracol percebe o quão afortunado é por não estar à mercê dos desafios que tantos outros enfrentam. Na vida real, falta muitas vezes essa capacidade de olhar em redor. “Em que lugar das hierarquias sociais nos encontramos? Porque é que há tantas desigualdades? Porque é que nem todos têm direito a uma casa própria? Porque é que uns correm riscos e outros não? Porque é que uns têm de trabalhar tanto para ter uma casa e outros já nasceram com ela? Acho que essas questões são interessantes trabalhar em contexto escolar e familiar”, remata Capicua, que entretanto já está a pensar noutras histórias.
O próximo livro deverá ser “de poemas no universo da botânica”, até porque é uma das suas paixões, ou não fosse uma orgulhosa “agricultura urbana”. Mas também gostava de escrever um livro sobre o Porto, a sua cidade-natal. Tudo a seu tempo. Primeiro quer voltar aos palcos com o próximo disco-livro da Mão Verde. “Gostava que fosse na Primavera.” Até lá, convida às famílias a abraçar a aventura do caracol. A primeira apresentação é em Lisboa, na companhia da ilustradora Matilde Horta, que dá vida e cor à história, mas a hora do conto também passará, como não poderia deixar de ser, pela Invicta, a 27 de Setembro, em horário a confirmar, na Biblioteca Almeida Garrett.
Como é que um caracol foge de casa?, de Capicua (texto) e Matilde Horta (ilustração). Nuvem de Letras. 48 pp. 14,95€.
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