Desde 2017 que o Washington Post, um dos mais importantes jornais norte-americanos, adotou a frase «Democracy Dies in Darkness» (A democracia morre na escuridão) como slogan. A frase, como explicou o ex-CEO do periódico à Global Mentor Network em 2020, foi escolhida porque «se não se fizer luz sobre o governo, o nosso processo, os nossos decisores e os nossos representantes eleitos, a democracia pode morrer». Partindo do pressuposto que o jornalismo é um dos pilares dos sistemas democráticos, o slogan parece fazer todo o sentido. Mas será que o processo de erosão democrática está, realmente, a acontecer na escuridão?

O assassinato de Iryna Zarutska

Uma das grandes histórias que nos chegaram da outra margem do Atlântico durante esta semana foi o assassinato da jovem ucraniana Iryna Zarutska. No verão de 2022, poucos meses após Vladimir Putin ter lançado a ofensiva russa sobre o território ucraniano, Zarutska, então com vinte anos, procurou refúgio nos Estados Unidos da América. Três anos depois, durante uma viagem de metro – que, ao que tudo indica, seria rotineira – em Charlotte, Carolina do Norte, ao sair do trabalho, a jovem foi esfaqueada até à morte por Decarlos Brown Jr.

As imagens, que podem ferir suscetibilidades, foram partilhadas na rede social X ao longo desta semana, ainda que o homicídio tenha ocorrido no passado dia 22 de agosto. É possível ver-se Zarutska sentada, a olhar para o telemóvel, no momento em que entra o homicida na carruagem. Sem qualquer troca de palavras, Brown senta-se imediatamente atrás da vítima, empunha uma faca e desfere três golpes no pescoço da jovem ucraniana. Naturalmente em estado de choque, Iryna Zarutska leva as mãos à cara e o assassino desloca-se pela carruagem, com o sangue a escorrer da faca. Os outros passageiros, que inicialmente não mostraram qualquer reação aparente, tentaram ajudar a jovem depois de Brown ter abandonado o metro. Mas foi tarde demais. 

A reação nas redes sociais foi imediata e a indignação foi o sentimento de ordem. Muitos canalizaram os seus protestos na direção da Justiça, e de alguns juízes em específico, que libertou Decarlos Brown mesmo apresentando cadastro, para a presidente da Câmara de Charlotte, Vi Lyles, e para os órgãos de comunicação social tradicionais pelo tempo demorado em reportar o caso (e depois de reportado, foram criticados pela forma como o fizeram). Também o movimento woke e o multiculturalismo que esta doutrina apregoa foram alvo de duras críticas.

Quanto ao cadastro do homicida, a CNN americana explicou-o de forma clara, tendo ainda contactado a família, em alguns parágrafos que merecem ser citados na íntegra: «Brown tem um longo histórico criminal, incluindo condenações por assalto à mão armada, roubo qualificado e invasão de propriedade. Familiares disseram à CNN que ele tem um histórico de problemas de saúde mental». «Ele passou mais de cinco anos atrás das grades por assalto com arma perigosa, segundo registos estaduais», acrescentou a CNN, dizendo ainda que os «registos do estado da Carolina do Norte elencam 14 casos envolvendo Brown, além daqueles relacionados ao homicídio. Remontam a 2011 e incluem prisões por delitos menores, como excesso de velocidade e roubo em lojas. Não está claro quantos deles foram levados a julgamento». Quanto aos problemas de foro psicológico, a sua irmã disse à CNN que depois de cumprir uma pena de prisão de cinco anos em 2020, Brown «não parecia ele mesmo» e tinha dificuldade em manter conversas e empregos. Diagnosticado com esquizofrenia, sofria de alucinações e paranoia. Tornou-se agressivo e chegou a atacar a irmã em 2022. «Embora tenha sido preso naquela noite, ela decidiu retirar as acusações por preocupação com os problemas de saúde mental do irmão». E, ainda de acordo com a testemunho de Tracey Brown dado à CNN, a justificação dada pelo assassino para cometer o crime foi a de que a jovem ucraniana estaria a ler a sua mente. 

Donald Trump, na sua conta oficial da rede social Truth, pediu a pena de morte: «O ANIMAL que matou tão violentamente a bela jovem ucraniana, que veio para os Estados Unidos em busca de paz e segurança, deve ter um julgamento ‘rápido’ (não há dúvidas!) e receber apenas a PENA DE MORTE. Não pode haver outra opção!!!». A procuradora-geral dos Estados Unidos já declarou que a pena de morte está «claramente em cima da mesa». 

Charlie Kirk morto a tiro

Ainda as imagens do assassínio de Zarutska que nos chegaram de Charlotte estavam a provocar uma forte onda de indignação, mais uma tragédia abalou o país e chocou o mundo. Desta vez em Utah. Charlie Kirk, uma figura pública conservadora, parte integrante do círculo íntimo de Donald Trump e com uma influência considerável sobre os jovens, foi morto com um tiro no pescoço num campus universitário. O homicídio aconteceu na Universidade de Utah, enquanto Kirk falava com alunos num modelo de debate pelo qual ficou também conhecido. Chamava-se The American Comeback Tour e, sob o slogan Prove Me Wrong (prova que estou errado), Kirk debatia com estudantes que discordavam intensamente com a suas visões políticas. O momento em que o jovem é atingido no pescoço, alegadamente a uma distância de cerca de 180 metros, ficou registado num vídeo que também poderá ferir suscetibilidades. Ao início, um suspeito foi detido, mas concluiu-se que não teria sido o autor do crime. Foi montada uma caça ao homem e, de acordo com a MSNBC, as autoridades já conseguiram recuperar a arma e a pegada do assassino, que dizem ser jovem.

Kirk, um dos principais rostos do movimento MAGA (Make America Great Again) jovem, publicou seis livros e fundou, em 2012, a Turning Point USA, cujo objetivo passa fundamentalmente pela disseminação das ideias conservadoras nos campi universitários. Era um homem de fé, casado e deixa dois filhos – a mais velha com três anos, o mais novo com apenas um.

Donald Trump avançou a notícia da morte de Charlie Kirk, quando ainda havia uma esperanças de que o influenciador pudesse recuperar no hospital para o qual foi transportado: «O grande, e até mesmo lendário, Charlie Kirk, está morto. Ninguém compreendia ou tinha o coração da juventude dos Estados Unidos da América melhor do que o Charlie. Era amado e admirado por TODOS, especialmente por mim, e agora já não está entre nós». Após estender as suas condolências à viúva Erika, o Presidente finalizou com a seguinte frase: «Charlie, nós amamos-te!». 

Estes episódios traumáticos e que deixam claras as consequências de uma polarização e de sentimentos de ódio crescentes na cena política, podem marcar um novo período nos Estados Unidos. Um período que, segundo especialistas, não aparenta ser risonho. Ao Nascer do SOL, Teresa Nogueira Pinto diz que «não será fácil restaurar formas de coesão social, que gosto de definir como um chão comum, num futuro próximo». Numa análise mais profunda, a professora da Universidade Lusófona explica que «John Adams disse, e Charlie Kirk lembrava-o muitas vezes, que a Constituição americana tinha sido escrita para um povo moral e religioso, e seria totalmente desadequada para o governo de um povo que não fosse assim. E de facto há uma fortíssima correlação entre cristianismo e a democracia na modernidade. A liberdade carece de uma ordem». Ainda assim, continua Teresa Nogueira Pinto, «vimos de décadas muito marcadas pelo relativismo moral, até por um certo niilismo. E de hegemonia, cultural, mas também constitucional, de uma esquerda progressista que tem grande dificuldade em aceitar a liberdade, o contraditório, e o debate. E para quem o inimigo político é um inimigo moral e total». «E por isso», acrescenta, «a violência surge como justificável, uma forma de redenção. Isso, creio, ficou visível nos protestos que se seguiram à morte de George Floyd. Ao mesmo tempo temos uma aceleração sem precedentes do tempo político, que cria a sensação de estarmos 24 sobre 24 horas numa campanha política».

Assim, parece que a democracia não morre apenas na escuridão. Está a morrer à vista de todos. Nos transportes públicos e nas universidades em plena luz do dia.