Depois de ser desativado, o navio, que foi fabricado nos EUA e era conhecido como SS Medina, foi renovado e transformado em hotel. Está agora em terra firme
Em 1914, dois anos depois de o Titanic ter embarcado na sua malfadada viagem inaugural, o SS Medina, movido a vapor, saiu do estaleiro em Newport News, Virgínia, Estados Unidos da América.
Desde então, este navio teve muitas vidas — e muitos nomes. Foi uma carreira que acabou por torná-lo no navio de passageiros mais antigo em atividade nos oceanos. Contudo, a mais recente missão deste barco com 111 anos é, talvez, a mais improvável de todas.
O Medina foi originalmente usado para transportar cebolas e outras mercadorias, acabando por ser recrutado para ajudar nos esforços dos Estados Unidos da América durante a Segunda Guerra Mundial. Foi depois convertido num navio de passageiros, o SS Roma, e equipado com um motor a diesel, antes de servir como navio de cruzeiro sob o nome MS Franca C. Em 1977, foi adquirido por uma organização cristã e batizado com um novo nome, MV Doulos, operando como um navio missionário e uma biblioteca flutuante.
Nas três décadas seguintes, navegou mais de 360 mil milhas náuticas e atracou em mais de 100 países. Chegou mesmo a ser atacado com granadas por separatistas muçulmanos nas Filipinas, num incidente terrorista em 1991, que causou a morte de dois missionários.
O SS Medina passa em frente da Estátua da Liberdade durante a sua viagem inaugural em 1914 (Alamy)
Visitantes fazem fila para entrar no navio, na altura conhecido como MV Doulos, nas Filipinas, em 2007 (Jay Directo/AFP/Getty Images)
Agora, depois de mais de um século no mar, o navio chegou ao seu destino final. Em terra firme, em Bintan, uma ilha tropical da Indonésia, que é conhecida pelos seus resorts de praia com tudo incluído. O empresário Eric Saw, natural de Singapura, é o mais recente proprietário desta histórica embarcação. Prefere ser conhecido como o seu “administrador”. Passou os últimos 15 anos, gastando 23 milhões de dólares de Singapura, cerca de 15 milhões de euros, do próprio bolso, para transformar o navio num hotel de luxo.
“Se não tivesse tido este projeto, talvez tivesse um Ferrari e um Lamborghini em casa, ou estivesse a navegar pelo mundo todos os anos com a minha família”, reflete o empresário de 74 anos durante um almoço no restaurante do hotel, que faz parte de uma nova estrutura de dois andares construída na proa do navio. A gigantesca tarefa de comprar, renovar e transportar o navio histórico para terra foi, diz, “uma chamada de Deus”.
O navio agora chama-se Doulos Phos, o que quer dizer “Servo da Luz” em grego. E está instalado numa língua de terra que tem forma de âncora e que foi recuperada do Mar da China Meridional especificamente para o empreendimento de Saw. A enorme hélice, que passou muito escondida tempo escondida na água, está hoje totalmente visível. O mesmo acontece com a parte inferior do casco, com 130 metros de comprimento, que, tal como o do Titanic, foi construído com placas de aço unidas com rebites. Recorde-se que a soldadura não era amplamente utilizada na construção naval até à década de 1930.
No interior, corredores com tetos baixos conduzem a cerca de uma centena de quartos e suítes. Alguns ainda têm vigias circulares como janelas. Outros têm pesadas portas de metal, com maçanetas para puxar, que se abrem para conveses laterais que antes eram usados pelos marinheiros para se deslocarem pelo navio. Contudo, esses conveses estão agora subdivididos em varandas privadas com vista para o mar.
O Doulos Phos The Ship Hotel ocupa uma faixa de terra artificial em forma de âncora, recuperada especificamente para o empreendimento (Doulos Phos The Ship Hotel)
A primeira inauguração do hotel, em 2019, revelou-se uma falsa partida. As duras restrições às viagens impostas pela Indonésia e pela vizinha Singapura, cujos turistas abastados sustentam a economia de Bintan, que assenta no turismo, acabaram por paralisar as operações. Singapura só pôs fim às medidas relativas às fronteiras em 2023. Contudo, ultrapassadas essas barreiras, Saw espera atrair famílias jovens e entusiastas da história marítima.
Fica claro que o empresário aprecia proporcionar uma experiência marítima aos visitantes. Na hora de mostrar o navio á CNN, está sempre a repetir as expressões associadas aos hotéis convencionais. Aqui, os funcionários não são “pessoal”, são “tripulação”. Os hóspedes não dormem em quartos, mas sim em “cabines”. E não se pode falar em andar, mas sim em “convés”.
Esta embarcação pode agora, em termos legais, ser classificado como um edifício. Contudo, Saw garante que a vida aqui é tão autêntica como num navio. Alguns hóspedes, conta, sentem mesmo “um pouco de enjoo, especialmente quando olham pelas vigias e veem as ondas”.
“Ainda assim, depois de algumas horas, habituam-se”, brinca.
Salvo do ferro-velho
Antes de Saw se tornar dono do navio em 2010, o futuro da embarcação parecia algo sombrio. O MV Doulos já não era considerado apto para navegar. Além disso, o cumprimento dos novos regulamentos marítimos sobre segurança dos passageiros e prevenção de incêndios iria exigir milhões de dólares em investimentos adicionais.
O antigo proprietário do barco enviou-o para uma doca seca em Singapura, aguardando propostas de potenciais compradores. Entre os interessados estiveram empresas de demolição naval, que planeavam desmantelar o navio para sucata, segundo Saw. Este empresário, que na altura geria um restaurante num barco a vapor de três andares na ilha de Sentosa, tinha o sonho de transformar o navio num empreendimento que pudesse apoiar causas cristãs de caridade. Por isso, apesar de não ter um plano fechado, apresentou a proposta vencedora, de 900 mil euros.
Este valor é apenas uma fatia daquilo que custou o projeto. Ao longo de três anos, Saw gastou muito dinheiro em taxas de docagem e em manutenção. Ao mesmo tempo, pressionava as autoridades da sua terra natal, Singapura, para que lhe fornecessem um local permanente para instalar o navio. Como as negociações falharam, teve de ir procurar uma solução mais longe.
O navio está sobre uma plataforma de betão, com 130 por 16 metros, sustentada por estacas cravadas no fundo do mar (Doulos Phos The Ship Hotel)
Saw encontrou maior recetividade em Bintan, uma área turística criada na década de 1990, que resulta de uma parceria entre os governos da Indonésia e de Singapura. Apesar de ter considerado transformar o navio num hotel flutuante, o empresário rapidamente tomou consciência de que “a manutenção seria uma grande dor de cabeça”. Foi então que propôs um hotel em terra firme.
Houve um promotor imobiliário que se ofereceu para recuperar mais de um hectare na costa norte de Bintan, onde Saw poderia levar a cabo um arrendamento de longo prazo. “Foi então que eu tive a ousadia de lhe pedir uma ilha em forma de âncora, em vez de termos apenas um pedaço de terra retangular”, recorda, com um sorriso.
O desejo foi concedido, com a construção da península artificial a começar em 2014. Entretanto, o navio, que estava em mau estado, com os motores já desativados, foi rebocado para a ilha vizinha de Batam, onde foi remodelado. Todavia, o maior desafio técnico ainda estava para acontecer: içar o navio de 6.800 toneladas para terra.
Em outubro de 2015, o MV Doulos Phos, na altura com 101 anos, fez a sua última viagem oceânica, de Batam a Bintan. O solo marinho junto ao seu destino final foi escavado, de modo a criar uma bacia, a partir da qual o navio acabaria por ser puxado para terra.
Como a terra recuperada costuma levar anos, ou mesmo décadas, para assentar completamente, os engenheiros de Saw projetaram uma plataforma de betão de 75 por 16 metros – sustentadas por estacas cravas no solo, algumas a mais de 40 metros de profundidade – sobre a qual o navio acabaria por repousar.
Com gigantescos “airbags” a funcionar como rolos, houve uma série de guinchos mecânicos e arrastar a embarcação, ao longo de 167 metros, até uma rampa temporária. Foi um processo que demorou sete semanas – o triplo do previsto – e que deixava todos a “roer as unhas”, recorda Saw. O progresso era, muitas vezes, dolorosamente lento. “Num dia bom, cinco metros. Num dia mau, nem um metro sequer”.
“À medida que o processo se arrastava, confesso que fiquei desanimado. Ainda assim, agarrei-me sempre à esperança de que devíamos cumprir a visão que tinha sido colocada nos nossos corações”, refere.
Eric Saw, dono do Doulos Phos The Ship Hotel, conta que queria preservar o património do navio (Doulos Phos The Ship Hotel)
Manter o património
Esvaziar o navio e convertê-lo num hotel de cinco estrelas revelou ser outro conjunto de obstáculos. Reconfigurar os interiores exigiu arquitetos convencionais, mas também arquitetos navais, para garantir que o barco permanecia estruturalmente sólido.
“As cabines eram muito pequenas, muito espartanas”, diz Saw, que segue com rigor a tradição marítima de atribuir pronomes femininos às embarcações. “Muitas das vigias eram só pequenos orifícios, colocados no topo, porque não queriam que a água entrasse. Normalmente, uma cabine tinha dois beliches duplos. Costumavam ser divididas por quatro pessoas”.
As principais obras estruturais implicaram remover tanques de combustível e anteparas, para conseguir expandir os apertados aposentos. Muitas das 93 cabines deste hotel têm agora janelas grandes, distribuídas por vários compartimentos. Uma noite aqui pode custar entre 1,7 milhões e 3,8 milhões de rupias indonésias (entre 90 e 200 euros). Foram instalados novos sistemas elétricos e hidráulicos em todo o navio, bem como elevadores, escadas de incêndio e outros recursos necessários para cumprir as regras de construção e de segurança fixadas pelo governo.
Há, no entanto, muitos vestígios do passado marítimo deste navio que permanecem intactos, desde um eixo de hélice que promove a claustrofobia, passando por seis botes salva-vidas originais, que estão pendurados em roldanas nos dois lados da embarcação. A antiga sala de máquinas, que já não serve as suas funções, foi deixada praticamente intacta e está aberta aos visitantes. Algumas cabines originais foram também mantidas, funcionando agora como “cabines de experiência”. Por sua vez, os conveses superiores estão sempre abertos aos hóspedes. Saw diz que os convidados gostam de recriar a famosa pose de Leonardo DiCaprio e Kate Winslet no filme “Titanic” na proa do navio.
Há também referências à história nos interiores do navio. Os rebites originais recuperados durante a remodelação são um elemento recorrente nos móveis e acessórios. “Sentimos que podíamos manter o património do navio”, diz Saw, que se refere carinhosamente à embarcação como uma “grande senhora dos mares”.
Saw explica que todas as alterações feitas ao navio são reversíveis, caso um futuro proprietário deseje devolver o navio aos oceanos. Essa possibilidade, embora improvável, é uma prova do trabalho dos construtores navais originais, refere. “Poderia aguentar mais 111 anos, mas não estou tão certo quanto a mim”.
As cabines neste hotel podem custar entre os 90 e os 200 euros por noite (Doulos Phos The Ship Hotel)
Ainda assim, a ferrugem foi – e continua a ser – um grande desafio. “Os problemas com a ferrugem estão sempre presentes, mesmo quando se está em terra”, refere. E junta: “Se começar a pintar da proa até à popa, quando chegar à popa é novamente altura de começar na proa”.
Para Saw, é mais do que um projeto de paixão ou do que um ato de conservação: é uma missão. O empresário conta que só recebe um salário simbólico de um dólar por ano. Todos os lucros da operação do hotel vão para causas cristãs de caridade, independentemente de recuperar ou não o investimento que fez nesta embarcação, à volta de 15 milhões de euros.
“É só aço. É o que fazemos com ela que lhe dá significado”, reflete.