“O pior cenário de fome está atualmente a ocorrer na Faixa de Gaza”, avançou o alerta da Classificação Integrada da Segurança Alimentar (IPC).
Segundo o relatório da iniciativa apoiada pela ONU, “evidências crescentes mostram que a fome generalizada, a desnutrição e as doenças estão a causar um aumento nas mortes relacionadas com a fome”.
O alerta da IPC não classifica formalmente Gaza como estando em situação de fome. Tal classificação só pode ser feita através de uma análise, que a IPC revelou que “vai realizar brevemente” A IPC é uma iniciativa global que colabora com 21 grupos de ajuda humanitária, organizações internacionais e agências da ONU, e avalia a extensão da fome sofrida por uma população.
A guerra entre Israel e os militantes palestinianos do Hamas tem assolado Gaza nos últimos 22 meses. Enfrentando a condenação global pela crise humanitária, Israel anunciou no domingo que suspenderia as operações militares por 10 horas por dia em partes do enclave palestiniano e permitiria novos corredores de ajuda humanitária.
Para que uma área seja classificada como em situação de fome, pelo menos 20 por cento da população deve estar a sofrer de escassez extrema de alimentos, com uma em cada três crianças gravemente desnutrida e duas em cada 10 mil pessoas a morrer diariamente de fome, desnutrição ou doenças.
“É necessário tomar medidas imediatas para colocar um fim às hostilidades e permitir uma resposta humanitária em grande escala, sem obstáculos e que salve vidas. Este é o único caminho para impedir mais mortes e sofrimento humano catastrófico”, salienta o alerta do IPC.
Também esta terça-feira, o Programa Alimentar Mundial afirmou que a catástrofe em Gaza lembra as crises de fome observadas na Etiópia e em Biafra, na Nigéria, no século passado. Os dados mais recentes indicam que os limites da fome foram atingidos no consumo de alimentos na maior parte do enclave palestino devastado pela guerra — onde permanecem cerca de 2,1 milhões de pessoas — e na desnutrição aguda na cidade de Gaza, sublinha o alerta.
“As declarações formais de fome sempre ficam atrás da realidade”, afirmou David Miliband, chefe do grupo de ajuda International Rescue Committee, numa declaração antes do alerta do IPC.
“Quando a fome foi declarada na Somália em 2011, 250 mil pessoas — metade delas crianças com menos de cinco anos — já tinham morrido de fome. Quando a fome for declarada, já será tarde demais”, explicou David Miliband.
Fome e desnutrição a avançam rapidamente
O IPC classificou quatro áreas como estando em situação de fome: Somália em 2011, Sudão do Sul em 2017 e 2020 e Sudão em 2024. O IPC esclarece ainda que que não declara fome, mas fornece uma análise para permitir que governos e outras entidades o façam.
O Comité Independente de Revisão da Fome do IPC — que examina e verifica as conclusões do IPC que alertam ou identificam uma situação de fome — aprovou o alerta sobre Gaza esta terça-feira.
A última análise do IPC sobre Gaza, publicada em 12 de maio, previa que toda a população provavelmente enfrentaria altos níveis de insegurança alimentar aguda até o final de setembro, com 469.500 pessoas projetadas para atingir níveis “catastróficos”.
“Muitos dos fatores de risco identificados nesse relatório continuaram a deteriorar-se”, afirmou o Comité de Revisão da Fome no alerta esta terça-feira.
“Embora a extrema falta de acesso humanitário dificulte a recolha abrangente de dados, é claro, a partir das evidências disponíveis, que a fome, a desnutrição e a mortalidade estão a acelerar rapidamente”. Israel controla todo o acesso a Gaza. Após um bloqueio de 11 semanas, as operações de ajuda humanitária limitadas lideradas pela ONU foram retomadas em 19 de maio e, uma semana depois, a nova Fundação Humanitária de Gaza, com sede nos Estados Unidos — apoiada por Israel e pelos Estados Unidos — começou a distribuir ajuda alimentar.
Os esforços das organizações oficiais de ajuda humanitária desencadearam uma guerra de palavras, colocando Israel, os EUA e a GHF contra a ONU, grupos internacionais de ajuda humanitária e dezenas de governos de todo o mundo.
Israel e os EUA acusam o Hamas de roubar ajuda humanitária — o que os militantes negam — e a ONU de não impedir isso. A ONU afirma não ter visto provas de desvio em massa de ajuda humanitária em Gaza pelo Hamas.
O alerta do IPC realça que 88 por cento de Gaza está sob ordens de evacuação ou dentro de áreas militarizadas. “O acesso das pessoas a alimentos em Gaza é agora alargadamente irregular e extremamente perigoso”, lê-se no documento.
O IPC e o Comité de Revisão da Fome criticaram os esforços da GHF no alerta emitido esta terça-feira.
O IPC afirmou que a maioria dos “alimentos da GHF não estão prontos a consumir e requerem água e combustível para serem cozinhados, os quais são em grande parte indisponíveis”.
“A nossa análise dos pacotes alimentares fornecidos pela GHF mostra que o seu plano de distribuição levaria à fome em massa”, acrescentou o Comité de Revisão de Fome.
A GHF afirma que tem conseguido transportar ajuda para Gaza sem que seja roubada pelo Hamas e que, até agora, já distribuiu mais de 96 milhões de refeições.
O alerta do IPC afirmou ainda que é necessário um mínimo estimado de 62 mil toneladas métricas de alimentos básicos por mês para cobrir as necessidades alimentares básicas da população de Gaza. Mas afirmou que, de acordo com o COGAT, a agência de coordenação da ajuda militar israelita, apenas 19.900 toneladas métricas de alimentos entraram em Gaza em maio e 37.800 toneladas métricas em junho.
O território de 365 km2, onde vivem mais de dois milhões de palestinianos, está devastado por uma ofensiva em grande escala lançada por Israel em resposta a um ataque sem precedentes levado a cabo no seu território pelo movimento islamita Hamas, em 7 de outubro de 2023. Desde então, Gaza está sitiada pelo exército israelita, cujos bombardeamentos destrutivos causaram dezenas de milhares de mortos e provocaram uma catástrofe humanitária.
Segundo a ONU, são necessários, diariamente, pelo menos 500 a 600 camiões de alimentos, medicamentos e produtos de higiene para suprir as enormes necessidades da população palestiniana.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, congratulou-se com “o alívio das restrições à ajuda humanitária vital, mas isso está longe de ser a solução para acabar com o pesadelo”.
Para a porta-voz do Gabinete de Assuntos Humanitários da ONU (OCHA), Olga Cherevko, “será necessário tempo para determinar se (as medidas israelitas) fazem diferença no terreno”.
Contrariando as afirmações do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, o presidente americano Donald Trump afirmou na segunda-feira que havia sinais de uma “fome real” na Faixa de Gaza.
No entanto, esta terça-feira o ministro israelita dos Negócios Estrangeiros, Gideon Saar, afirmou que a situação em Gaza é “difícil”, mas há mentiras sobre fome. O governante rejeitou ainda a pressão internacional para um cessar-fogo na Faixa de Gaza e o reconhecimento do Estado palestiniano.
No início de março, Israel proibiu totalmente a entrada de ajuda em Gaza, antes de autorizar, no final de maio, o transporte de quantidades muito limitadas, causando graves escassez de alimentos, medicamentos e combustível.
Qual a definição técnica de fome?
Em 2004, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura desenvolveu a Classificação Integrada da Segurança Alimentar (IPC), como uma ferramenta de monitorização da fome global. Esta tornou-se o principal meio de identificar a fome, com uma escala variável da fase 1 (inexistência ou mínima insegurança alimentar) à fase 5 (catástrofe ou fome).
Define a fome como uma privação extrema de alimentos em que “a fome, a morte, a miséria e níveis extremamente críticos de desnutrição aguda são ou provavelmente serão evidentes”.
Para cumprir os critérios, uma área terá pelo menos 20 por cento dos agregados familiares a enfrentar uma falta extrema de alimentos, pelo menos 30 por cento das crianças a sofrer de desnutrição aguda e duas pessoas em cada 10 mil a morrer diariamente “devido à fome absoluta ou à interação entre desnutrição e doença”.
Se várias famílias estiverem a passar por condições de fome, mas não no nível exigido (20 por cento) da população), ou se os níveis locais de desnutrição ou mortalidade não atingirem os limites exigidos para a fome, essas famílias serão colocadas na categoria de catástrofe da fase 5 do IPC, mesmo que a área como um todo não esteja na fase 5 de fome.Pausa tática
Face à forte pressão internacional, Israel anunciou no domingo uma “pausa tática” diária nas hostilidades, “das 10h00 às 20h00 (7h00 às 17h00 GMT)” em certos setores de Gaza, para fins humanitários. No entanto, não especificou a sua duração.
As rotas designadas para os comboios de ajuda serão seguras das 6h00 às 23h00, segundo o exército.
Apesar de uma pausa parcial nos bombardeamentos anunciada por Israel, a Defesa Civil e fontes hospitalares da Faixa de Gaza relataram, esta terça-feira que 30 pessoas morreram, 12 das quais crianças, em ataques noturnos israelitas ao campo de Nousseirat, no centro do território palestiniano, devastado por quase 22 meses de guerra.
Fontes do hospital Al Awda revelaram à agência EFE, que a maioria dos corpos chegou à unidade hospitalar em pedaços.
Os tanques israelitas avançaram sobre o campo, obrigando muitas famílias a fugir, embora outras tenham ficado para trás, escreveu ainda a EFE, que cita fontes do enclave palestiniano.
De acordo com o balanço do Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo grupo islamita palestiniano Hamas, mais de 59 mil pessoas morreram e outras 145 mil ficaram feridas em Gaza desde o início da ofensiva israelita, na sequência dos ataques do Hamas e de outras milícias palestinianas contra Israel, a 7 de outubro de 2023.