A Fitch subiu o rating da dívida portuguesa, mas a seriedade desceu. Montenegro banalizou o dever de sigilo de informação, violou a lei e deu ao mundo a imagem de um país onde as regras são opcionais.
O dever de sigilo é coisa séria, ou pelo menos devia ser. Esta sexta-feira, em Osaka, no Japão, Luís Montenegro voltou a demonstrar que para ele as regras são mais uma sugestão do que uma obrigação.
Às 10h53, numa declaração à Lusa que rapidamente se propagou pelos órgãos de comunicação social e provocou reações do Presidente da República e do candidato a Belém Marques Mendes, o primeiro-ministro anunciou ao mundo que estava por horas uma subida do rating de Portugal pela agência de notação Fitch. O problema é que agência de notação de crédito só tornaria pública a sua decisão ao final do dia, como mandam as boas práticas e as leis europeias.
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Esta não é apenas uma questão de etiqueta diplomática ou de um mero detalhe burocrático. Estamos perante uma violação flagrante do primeiro-ministro de Portugal do dever de sigilo sobre informação privilegiada, um crime ao abrigo da legislação europeia.
O Artigo 10 do Regulamento das Agências de Rating de Crédito, complementado pelo Market Abuse Regulation e pelas diretrizes da Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (ESMA), estabelece um quadro legal rigoroso que obriga ao sigilo absoluto sobre informações de rating até à sua divulgação oficial pública. Estas normas, embora se dirijam principalmente às agências de rating, aplica-se a qualquer pessoa que tenha acesso a informação privilegiada sobre ratings — incluindo, obviamente, figuras governamentais.
Em 2023, justamente pela divulgação prematura de ratings, a Standard & Poor’s foi multada em 1,11 milhões de euros pela ESMA. A publicação de uma notação de crédito antes da data devida “pode prejudicar o emitente, os investidores e, de um modo mais geral, o funcionamento ordenado dos mercados financeiros“, destaca o regulador europeu.
Quando altas figuras do Estado violam os deveres de confidencialidade, transmitem uma imagem de um país onde as regras são opcionais e onde o oportunismo político e a vaidade falam mais alto que o rigor institucional.
As avaliações das agências de notação creditícia seguem um protocolo rígido e bem definido. Quando realizadas essas avaliações, os resultados são fechados às terças-feiras da semana em que será apresentado o relatório. A informação é depois comunicada ao governo e à agência responsável pela gestão da dívida pública (IGCP) na quarta-feira, cabendo a ambos e a todas as outras entidades com acesso antecipado à informação um dever de reserva absoluto até o relatório ser publicado na sexta-feira, que ocorre sempre após o fecho dos mercados americanos.
Este sistema existe por uma razão óbvia: evitar que informação sensível sobre a credibilidade financeira do país seja utilizada para manipulação do mercado e os agentes com informação privilegiada possam tirar vantagens indevidas desses dados.
Assim, quando na sexta-feira ao final da manhã Montenegro “furou” este embargo, não estava apenas a quebrar um protocolo, mas a cometer uma séria infração que, nos termos da legislação europeia, constitui “divulgação ilegal de informação privilegiada”.
Consequências da leviandade
Infelizmente, este episódio do primeiro-ministro não é caso único entre os nossos governantes. A tentação de “colocar a carroça à frente dos bois” tem pelo menos um precedente ilustre.
Há oito anos, a 3 de fevereiro de 2017 (uma sexta-feira), o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa anunciou publicamente, cerca das 14 horas, que a Fitch mantinha o rating de Portugal. Confrontado com a irregularidade, Marcelo tentou justificar-se afirmando que “os operadores já sabiam desde o dia anterior” – uma desculpa que não colhe, pois o problema não é o que os mercados suspeitavam, mas sim a violação formal do embargo por parte de uma figura de Estado.
Estes comportamentos não são meros deslizes protocolares. Têm implicações sérias tanto para a imagem internacional do país como para o funcionamento dos mercados financeiros. Quando altas figuras do Estado violam os deveres de confidencialidade, transmitem uma imagem de um país onde as regras são opcionais e onde o oportunismo político e a vaidade falam mais alto que o rigor institucional.
Na sexta-feira, ao final da manhã, quando Montenegro antecipou em Osaka a decisão da Fitch, não estava a “dar uma boa notícia aos portugueses”, como disse, mas a trocar o dever de sigilo de informação privilegiada pela bazófia.
No caso específico de Montenegro, este episódio encaixa perfeitamente no padrão já demonstrado em março, quando decidiu partilhar publicamente os detalhes do seu “investimento sofrido” nas ações do BCP. Na altura, o primeiro-ministro revelou como tinha feito “uma asneira” ao comprar ações do banco, tendo depois vendido tudo uma semana antes de tomar posse com uma mais-valia de 200 mil euros. Mais uma vez, aqui, a vaidade falou mais alto que o sentido de Estado — exatamente como aconteceu agora em Osaka.
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Portugal não precisa deste tipo de protagonismo. O país tem conseguido, nos últimos anos, reconstruir a sua credibilidade nos mercados internacionais através de políticas consistentes e de um comportamento institucional sério.
Na sexta-feira, às 22h02, a Fitch acabou por confirmar a subida do rating de Portugal para “A”, reconhecendo a redução contínua da dívida pública e o desempenho orçamental superior ao da maioria dos seus pares. Após a Standard & Poor’s ter subido a notação de Portugal em um nível para “A” a 28 de agosto, esta foi a “segunda revisão em alta do rating para Portugal em apenas duas semanas”, notou o Ministério das Finanças num comunicado enviado às redações, pouco depois do anúncio da Fitch. Mas este sucesso não justifica que Montenegro tenha tratado a informação privilegiada como se fosse assunto para conversa de café.
O rating de um país não é uma ferramenta de marketing político. É antes um indicador técnico que afeta diretamente os custos de financiamento do Estado e a perceção dos investidores internacionais sobre a economia nacional.
Quando Montenegro antecipou em Osaka a decisão da Fitch, não estava a “dar uma boa notícia aos portugueses“, como disse, mas a trocar o dever de sigilo de informação privilegiada pela bazófia. Demonstrou, uma vez mais, que para ele as regras são para os outros. E isso, infelizmente, também conta para a imagem de Portugal lá fora.
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