Um executivo, um entregador e um pescador sobem em uma bicicleta. Poderia ser o começo de uma boa piada, mas em Delivery (Baião) é o início de mais um dia na vida de três pais que têm, em comum, duas rodas sob si, trabalhos que os levam para longe e o imenso desejo de dar meia-volta e retornar para o abraço do próprio rebento. Escrito por Tino Freitas, a obra paira sobre os significados do que é ser pai e as múltiplas configurações que uma família pode ter. Para dar cabo da pluralidade, os ilustradores Gustavo Nascimento, Natália Gregorini e Odilon Moraes criam três narrativas visuais paralelas que, em algum ponto do caminho, se entrelaçam e conferem ainda mais sentido às grandes cidades e suas conexões secretas.
Nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, os autores contam sobre os processos de criar uma história a oito mãos, e refletem sobre a presença paterna durante a infância e novas formas de ver as relações de afeto.
Ilustração de Gustavo Nascimento, Natália Gregorini e Odilon Moraes (Divulgação)
Como surgiu Delivery?
Tino Freitas: Nasceu enquanto seguia de carro por um bairro de Brasília. Caía uma chuva fina quando cruzei com um jovem entregador, de bicicleta, pedalando em uma subida. Aquela cena ficou passeando na minha cabeça e se juntou a outras vivências envolvendo o motivo das nossas escolhas profissionais. A ideia de que há diferentes “entregas” nisso. À noite daquele dia, comecei a escrever a história.
O que o livro sugere sobre a paternidade na vida de uma criança?
Gustavo Nascimento: Entendo o papel da paternidade como uma base que permite à criança — e à criança interna do adulto — florescer. Elas entendem que alguém vai e volta por elas. Apesar da frustração do filho, o pai da história mostra que a distância não significa ausência de amor ou lembrança. No começo da vida adulta, o que mais senti foi falta das pessoas. Fazer esse livro foi um exercício de entender que todos nós lembramos, apesar da correria da vida.
Ilustrações de Gustavo Nascimento, Natália Gregorini e Odilon Moraes (Divulgação)
No afeto, o que os pais entregam?
TF: O tempo dedicado ao outro é o bem mais precioso, a entrega mais difícil. Esse tempo em Delivery é exposto na sequência da espera, em que cada narrativa é apresentada em uma dupla de páginas: cada filho aguardando seu pai, mas uma espera diferente para cada um. Para um deles, o tempo junto, fisicamente, já não acontece com frequência por motivos geográficos, mas eles dão um jeito: a tecnologia ajuda a compartilhar o dia a dia. Isso aconteceu durante mais de vinte anos entre o meu pai, o meu filho e eu, com os dois morando em Fortaleza e eu em Brasília.
Essas entregas, flutuando entre as físicas e emocionais, transitam no livro ora de forma explícita, ora implícita, pedindo ao leitor que retorne mais vezes para perceber novas nuances — a grande maravilha que é esse tipo de narrativa em que texto e imagem conversam o tempo todo.
Como veem as conexões que se contrastam com o cotidiano nas cidades e sua relação com o tempo?
GN: Como um alívio. Passamos tanto tempo preocupados e dedicados ao trabalho que é quase um ato de nobreza encontrar — e ter quem encontre — tempo com você. Tempo é tudo que alguém que ama pode oferecer.
TF: A literatura (e Delivery incluso) permite que o leitor olhe para si e também para os outros buscando o sentido da vida, que pode ser uma entrega pessoal ou algo enraizado na premissa de entregar possibilidades melhores para os seus familiares. Em sociedade, é muito mais retratado que as mães ocupam esse lugar de entrega total. Isso não significa que todos os pais sejam omissos. Existem pais como os do livro e é maravilhoso que eles se reconheçam e se sintam representados.
Ilustração de Gustavo Nascimento, Natália Gregorini e Odilon Moraes (Divulgação)
Em que momentos vocês sentem que os seus pais entregaram algo importante, mesmo sem dizer nada?
TF: Minha mãe morreu muito jovem, aos 44 anos. Meu pai se transformou em mãe, professor e em tudo o que lhe foi possível para que sentíssemos menos a falta dela. Ele não acabou com aquela falta, mas cresceu como pai amoroso, acolhedor e presente. Sua figura foi decisiva na minha formação como leitor, escritor e cidadão.
Por volta dos meus sete anos, morávamos em Sobradinho, no interior da Bahia. Na nossa escola não havia biblioteca e não existia livraria na cidade, mas em frente à escola havia uma banca de jornal. Sabendo que eu gostava muito de ler, meu pai me levou até lá e me apresentou ao proprietário, com quem fez um acordo que me deixava levar o que quisesse da banca. Ele me deu um mundo de histórias de presente. Uma entrega dessas a gente leva para a vida toda.
Natália Gregorini: Minha mãe foi quem ocupou o papel principal na minha criação e sei que fez muitas escolhas silenciosas para que eu tivesse conforto, em detrimento do que ela realmente pudesse desejar para a própria vida. Vejo essas escolhas como entregas imensas.
Como foi pensar graficamente cada uma das histórias?
Odilon Moraes: Havia uma espécie de roteiro que determinava que seriam três pais, cada um desenhado por um ilustrador. Isso daria uma dica ao leitor de que haveriam três narrativas acontecendo simultaneamente e que deveriam se entrelaçar. Fizemos cada um sua sequência e marcávamos reuniões para irmos unindo as três, como em um quebra-cabeças. Não é um livro fácil de se ler. Exige muito ir e vir em cada história, mas quando entramos no jogo, quase sentimos que estamos desvendando um segredo.
GN: Precisei imaginar por onde circula uma família em ascensão social. Me inspirei na ilustradora britânica Charlotte Ager, que sempre mostra momentos de conexão no meio do caos urbano. Gosto de misturar o analógico com o digital — uma linguagem que, pra mim, dialoga com a dinâmica das cidades e com o tipo de arte que faço.
NG: As narrativas visuais precisariam comunicar a história com poucos elementos. Escolhi fazer desenhos com contornos bem marcados e com uma estética mais realista, baseada em imagens da internet e do meu dia a dia. Fiquei com a história de um entregador que passa o dia pedalando pela cidade. Usei o desenho digital, que me possibilitou explorar essas cenas urbanas com fotografias, desenhando elementos da cidade por cima da foto.