Não sei se o icónico escrito “Construam-me, porra!”, estampado numa das paredes do pontão da então futura barragem de Alqueva, teve alguma influência em fazer acontecer essa mesma barragem e todo o sistema do Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva (EFMA). Mas o EFMA aconteceu, depois de muitos avanços e recuos, e de depois de muitos profetas da desgraça o condenarem a ser um “elefante branco” a estragar a paisagem alentejana.
Parece que existe hoje o risco de estarmos perante uma situação que pode bem repetir esta saga: a implementação da estratégia “Água que Une”, apresentada pelo senhor primeiro-ministro numa sessão solene no passado dia 9 de março, no Convento de São Francisco em Coimbra. Recorde-se que o grupo de trabalho que elaborou a referida estratégia foi criado em 16 de julho de 2024 por despacho conjunto dos titulares das pastas do Ambiente e da Agricultura. Passaram, portanto, 14 meses desde que foi criado o grupo de trabalho (constituído por pessoas competentes com total domínio do assunto água), e mais de seis meses desde que o resultado desse trabalho foi apresentado publicamente.
No seu discurso de apresentação no dia 9 de março (já lá vão, insisto, mais de seis meses), o senhor primeiro-ministro convocou todos os portugueses para que se unissem em torno deste desígnio nacional: concretizar um plano que, finalmente, colocava a questão da água como decisiva para o nosso futuro coletivo.
Dirijo-me, pois, ao senhor primeiro-ministro: o seu desafio foi aceite. Pelo menos por parte dos portugueses que (ainda) vivem da agricultura e de tantos outros que (também ainda) escolheram o “resto do país para além do litoral” para viver. Por aqueles que experimentam na pele a escassez dessa mesma água de tempos a tempos e em certas regiões, sabendo que o país dispõe de volumes de água mais do que suficientes para que tal não tenha que acontecer, bastando para isso que a água que existe (e que de momento não une) possa ser gerida de forma inteligente, com as estruturas e a governança que a Água que Une prometeu.
As expetativas criadas foram enormes: finalmente poderíamos ter uma visão global e articulada sobre a gestão da água em Portugal, que ajustasse a sua disponibilidade em cada momento às necessidades de cada região do país, privilegiando a inteligência de uma abordagem multifuncional em detrimento do facilitismo de um olhar apenas focado na produção de energia ou noutra qualquer função que a água desempenha para o nosso território e para as nossas pessoas.
Como disse, foram grandes as expetativas criadas. Nessa altura, todos acreditámos que o passo seguinte seria avançar de forma decidida para a criação de um modelo de governança simples e eficaz e para um quadro normativo que não obstaculizasse de forma gratuita o avanço da implementação desta estratégia.
Debalde! Em vez disso, a opção foi avançar para uma consulta pública que, nesta fase, não era obrigatória e que, mais tarde e para cada projeto em concreto, vai ser, aí sim, uma exigência da lei. Ou seja, a escolha foi mesmo preencher o tempo, de forma muito pouco interessante para o objetivo maior. Sabemos que, inevitavelmente, existirão fricções entre a pasta do Ambiente, a pasta da Economia e a pasta da Agricultura. É quase certo, e perdoem-me se estiver totalmente equivocado, que esta paragem no processo, se fica a dever a essas legítimas fricções. Mas não é aceitável que tal aconteça e, muito menos, que tal se prolongue.
Sabemos que, inevitavelmente, existirão fricções entre a pasta do Ambiente, a pasta da Economia e a pasta da Agricultura
Assim, senhor primeiro-ministro, daqui lhe lanço o apelo para que assuma de imediato a coordenação direta de todo este processo: que em 30 dias se defina a governança e que se avance na alocação dos meio necessários para que acreditemos que a estratégia irá acontecer. Só assim as normais fricções entre as diversas pastas do seu Governo poderão ser dirimidas sem que o país (e as pessoas e regiões do costume) tenha que pagar uma fatura demasiado elevada. A obra tem que acontecer, sem que se utilize o argumento de algumas estarem em curso, pois são obras que, com ou sem “Água que Une”, estariam a acontecer.
Termino, senhor primeiro-ministro, desejando que não venha a ser necessária a inscrição de uma máxima semelhante à de Alqueva, numa qualquer parede com estilo: “Implementem-me, porra!”.
O autor escreve segundo o acordo ortográfico de 1990