Refik Anadol, artista de mídia turco, de 40 anos, explica seu trabalho como o de um “piloto de nave espacial”. Pois é ele quem está na cadeira de comando — e dá até para imaginar o painel cheio de botões — para criar comentadas instalações artísticas que levam a inteligência artificial (IA) em sua composição. Para isso, coleta dados (“com permissão”, diz) e determina padrões para que algoritmos possam processar e responder ao material. Como resultado da criação de homem e máquina brotam exibições abstratas em cores vibrantes que derretem aos olhos e pululam de um canto a outro.
Refik comanda um estúdio que leva seu nome e tem profissionais de dez nacionalidades, incluindo brasileiros. Entre seus feitos, tem um trabalho no acervo do MoMa, em Nova York e uma releitura do gol favorito de Lionel Messi, marcado na final da Champions League, de 2009. No trabalho, marcadores de gestos e expressões faciais coletaram dados para transformar a cena em uma experiência audiovisual abstrata. “Tenho uma grande obsessão por aquelas pequenas moléculas em movimento”, diz. Em entrevista ao GLOBO, Refik fala sobre propriedade intelectual, o novo museu que vai fundar e por que enxerga a IA como uma “força”.
Obra ‘Unsupervised’, no MoMA: marco da carreira do artista — Foto: Refik Anadol Studios
Qual é a parte humana do seu trabalho?
Eu, como humano, sou a parte humana (risos). Era muito novo quando ganhei meu primeiro computador. E a sensação de que ele poderia trabalhar, imaginar com ele, começou muito cedo também. Há dez anos passei a ser o primeiro a integrar o programa AMI (Artists + Machine Intelligence), o que me permitiu começar a trabalhar com IA. E, claro, dez anos para IA se parecem com cem anos. Nunca senti que fosse um trabalho preguiçoso. A IA, pra mim, parece uma extensão do meu cérebro. Sinto como se fosse a minha mão que está me permitindo segurar o pincel, ou minha mente, ampliando a imaginação.
Onde está seu gosto pessoal?
Está em todo lugar. Tudo é iniciado com dados, que são os pontos fundamentais. Pode ser um dado meteorológico, como os padrões do vento. Depois disso, nós treinamos o modelo de IA, é um processo. Nesse passo, há muitas decisões estratégicas a serem tomadas, as cores, formas, a velocidade. Estou sempre procurando esses padrões, essa estética. Não é só máquina. São 50% máquina, 50% humano, uma colaboração verdadeira.
Como é possível coletar dados, usar IA, e não ultrapassar a propriedade intelectual de outras pessoas que tenham material on-line?
Permissão. Não mexo em nenhum dado para o qual eu não tenha permissão. Essa é a nossa herança. A gente sempre pergunta (por autorização de uso), mas geralmente as pessoas é que vêm até nós com os dados. No nosso museu de IA, o Dataland, estamos trabalhando com um grande modelo voltado à natureza, para o qual coletamos meio bilhão de imagens. Fomos em cada instituição, museu, biblioteca, pedindo permissão antes de começar a trabalhar com o material. Espero que todos que trabalham com IA tenham esse compromisso ético. Queremos ser esse exemplo.
Exibição no museu Guggenheim Bilbao, em homenagem ao arquiteto Frank Gehry — Foto: Refik Anadol Studios
Não tem receio que outra pessoa que faça arte com as mesmas ferramentas digitais passe a copiar você?
O que me protege é que nossos dados são únicos e nós treinamos os nossos próprios modelos. Isso torna o nosso trabalho único. Mas tenho muitos imitadores. As pessoas me perguntam: “você não tem medo de a IA copiar seu trabalho?”. E eu respondo: pessoas já estão copiando (risos). Fomos os primeiros a desenvolver essas ideias, esse conceito. Inspirei muitos estudantes. Acho que a inspiração é importante. Mas o mais importante de tudo é o reconhecimento, dar os créditos. A boa notícia é que a IA sabe muito bem quem começou o que e quando.
E a possibilidade de um algoritmo te imitar?
Tento não pensar como um algoritmo, deixar a mente vagar, mudar e sempre surgir com novas ideias. De novo, cada dado é único. Trabalhamos com florestas tropicais, flores, nuvens, o oceano, corais, paisagens, geleiras. Temos todos esses conjuntos de dados diferentes que não seguem uma única técnica. Eu sou obcecado pela natureza e ela sempre oferece algo novo. Nos últimos dez anos, nunca senti tédio.
Há especialistas que dizem que a IA nos fará criar e pensar menos. Acredita que a ferramenta pode nos ajudar a ser mais criativos?
Não acho que a IA será apenas uma ferramenta criativa, ela é mais. IA é extremamente poderosa. Eu a chamo de força, que pode assumir qualquer forma ou estrutura. Uma força que, se você trouxer o mal, ela se torna má. Se trouxer o bem, ela se torna boa. Se trouxer uma mentalidade criativa, ela se torna uma força criativa. Se sou um artista com dificuldades de criar, ela pode ajudar, mas é importante lembrar que a mesma IA provavelmente vai dar a mesma resposta para outra pessoa. Vejo que as pessoas podem se confundir achando que a IA está trabalhando apenas para elas. Na verdade, não está.
Estamos entrando em uma nova era para a arte? Como podemos chamá-la?
Mesmo para o nosso museu estou chamando de “arte com IA”. Artes que usam IA. Porque precisamos ser muito claros. Não acho que chamar apenas de arte digital seja suficiente. Nós estamos usando uma inteligência no nosso trabalho, uma inteligência que é artificial. Sinto que precisamos definir esta era, o momento em que a IA surge e se torna uma forma de arte. Estamos vivendo um renascimento, e literalmente testemunhando momentos muito únicos para a humanidade.
Acha que a visão do seu trabalho é impactada de alguma forma por você ser um imigrante?
Acredito que isso é muito verdadeiro porque, antes de tudo, sou turco e amo minha cultura, minha história. Quando me mudei para Los Angeles, há quase 12 anos, a sensação não era de estar me afastando da minha cultura. Era mais sobre descobrir o mundo. Assim que comecei a viajar para outros países, passei a amar essa experiência de ir, encontrar novas culturas e sensações. Claro, respeito as fronteiras, os passaportes, mas acho que tudo isso é uma história muito antiga. Essas fronteiras, essas separações e tudo isso que criamos… Eu entendo, mas sinto que vejo o mundo todo como um só.
Como será o Dataland, o museu que anunciou que vai construir na Califórnia?
É muito difícil criar um museu de um novo meio que está apenas começando (o museu não tem data de inauguração) Não é pintura, não é escultura, é um meio vivo. O desafio para mim é: como podemos abrir um museu de IA que seja um grande exemplo para a humanidade? Porque sabemos que os modelos de IA hoje estão muito focados no raciocínio humano, em assistentes pessoais. Pensei que, se fôssemos abrir um museu de IA, teríamos que fazer a escolha certa: criar nosso próprio modelo, nosso próprio sistema, para garantir que o museu esteja usando dados éticos, uma IA sustentável.