A administração Trump ordenou que fossem removidas as informações relacionadas com a escravatura até aqui expostas em vários parques nacionais norte-americanos, de acordo com quatro fontes. Entre o material a remover encontra-se a fotografia histórica em que um ex-escravizado mostra as cicatrizes impressas nas suas costas.

As supracitadas fontes, que falaram ao Washington Post sob anonimato por não estarem autorizadas a prestar declarações à imprensa, afirmam que tais remoções decorrem de um decreto presidencial de Donald Trump, assinado em Março, que orienta o Departamento do Interior para a supressão de informação que reflicta uma “ideologia corrosiva” e menospreze os “americanos históricos” [na terminologia republicana, o termo refere-se à população branca cristã]. Há funcionários do Serviço Nacional de Parques que estão a fazer uma interpretação ampla da directiva, aplicando-a a dados e documentos sobre racismo, sexismo, escravatura, direitos dos homossexuais ou perseguição de povos indígenas.

Dando sequência à ordem de Trump, os funcionários do Departamento do Interior definiram linhas condutoras, ordenando aos funcionários da agência a identificação de todo e qualquer item, incluindo sinalização e produtos à venda em lojas de recordações, que possa estar em desacordo com o decreto. Os funcionários de Trump lançaram também uma iniciativa para incentivar os visitantes dos parques a denunciar a presença de materiais ofensivos; contudo, receberam, maioritariamente, críticas ao governo e elogios aos parques.

As ordens superiores mais recentes incluem a remoção de informações expostas no Parque Histórico Nacional Harpers Ferry, na Virgínia Ocidental, afirmaram ao Washington Post duas fontes familiarizadas com o tema. O parque está instalado no local onde o abolicionista John Brown (1800-1859) liderou um raide com o objectivo de armar escravos para uma revolta. Os funcionários também foram informados de que os materiais disponíveis na Casa do Presidente, em Filadélfia, onde George Washington (1732-1799), o primeiro Presidente americano, mantinha escravos, não estão em conformidade com a política definida, de acordo com uma terceira fonte.

Jonathan Zimmerman, professor da Universidade da Pensilvânia que estuda a história da educação, defende que este é o mais recente passo na interferência, sem precedentes, da administração Trump nas instituições cívicas do país — uma campanha que também inclui a tomada do Kennedy Center e tentativas de pressionar o Smithsonian. “Isto representa um enorme aumento do poder federal e do controlo sobre aquilo que aprendemos”, disse Zimmerman. “E vindo da equipa que diz que a educação deve ser definida a nível estadual e local.”

A porta-voz do Serviço de Parques, Rachel Pawlitz, confirmou em comunicado que toda a sinalização está a ser revista.

“Materiais interpretativos que enfatizam de forma desproporcional os aspectos negativos da história dos Estados Unidos ou de figuras históricas, sem reconhecer o contexto mais amplo ou a evolução nacional, podem distorcer involuntariamente a compreensão [do passado], em vez de a enriquecer», afirmou Pawlitz.

Em Harpers Ferry, a equipa sinalizou mais de 30 placas, de acordo com uma fonte e com documentos analisados pelo Washington Post, que destacam informações potencialmente em violação da política de Trump. Incluem sinalética que se refere à discriminação racial e à hostilidade da população branca em relação às pessoas anteriormente escravizadas. Os funcionários do Serviço de Parques sinalizaram as placas como “não conformes”, sendo agora esperado que cubram partes delas ou as removam, disse a referida fonte.

Paralelamente, os funcionários do Serviço de Parques ordenaram a remoção, noutro parque nacional, de uma fotografia histórica que ilustra a violência contra as pessoas escravizadas, conhecida como “The Scourged Back” [“As Costas Açoitadas”], de acordo com duas fontes ouvidas sob anonimato. Não identificaram o parque em questão por medo de represálias.

A fotografia, tirada em 1863, mostra as cicatrizes nas costas de um homem, cujo nome se acredita ser Peter Gordon, causadas por ferimentos infligidos pelos seus então proprietários, antes de conseguir fugir e libertar-se da escravatura.




A foto teve papel importante na consciencialização da população americana para os horrores da escravatura
McPherson & Oliver/Heritage Art/Heritage Images/Getty Images

A imagem teve grande circulação na época, e a população do norte dos Estados Unidos ficou chocada com o que ela mostrava, diz Anne Cross, investigadora de fotografia do século XIX no Museu de Arte da Faculdade Bowdoin.

“Os corpos de pessoas escravizadas como Peter Gordon revelaram-lhes realidades que nunca tinham visto com os seus próprios olhos”, explica Cross, “e, em muitos casos, isso alterou as suas opiniões políticas sobre a necessidade de derrotar a Confederação e preservar a União [no contexto da Guerra Civil Americana de 1861-1865]”.

Desde então, a fotografia tornou-se famosa, assumindo um significado de relevo na luta pela libertação negra, diz Cross. A revista New Yorker integrou-a numa colagem da sua capa em homenagem a George Floyd, um mês após a morte deste às mãos da polícia, em Maio de 2020. Ainda no mesmo ano, a actriz Viola Davis apareceu na capa da Vanity Fair a mostrar as suas costas, tendo o fotógrafo Dario Calmese reconhecido que procurou replicar aquela foto histórica.

No seu decreto presidencial, Trump destacava a “ideologia corrosiva” do Independence National Historical Park, em Filadélfia, onde os fundadores do país assinaram a Declaração da Independência dos Estados Unidos. O parque inclui os terrenos da Casa do Presidente, onde George Washington serviu como Presidente antes de a capital dos Estados Unidos se mudar para Washington, D.C. A casa foi demolida no século XIX, mas uma exposição foi inaugurada no local em 2010, com base em escavações arqueológicas.


Membros da comunidade local fizeram pressão para que essa exposição fornecesse informações detalhadas sobre a vida das nove pessoas que foram escravizadas por George Washington enquanto morava na casa como presidente. A exposição inclui os seus nomes, gravados numa parede de granito.

“Não se trata apenas de alguns cartazes que contam a história da escravatura”, disse Ed Stierli, director regional da Associação de Preservação dos Parques Nacionais. “Este é um lugar que conta a história completa, não apenas da escravatura na América, mas também como era a vida daqueles que foram escravizados por George Washington.”

Tentar retirar a escravatura da exposição da Casa do Presidente mudaria estruturalmente a natureza do local, diz Cindy MacLeod, que dirigiu o Independence National Historical Park durante 15 anos, até 2023.

“Esta é apenas uma das muitas exposições do Independence National Historical Park”, disse MacLeod. “E, para mim, é uma exposição vital.”