Um dos aspectos mais interessantes do cinema brasileiro do século XXI tem sido a sua “descentralização”, fugindo aos centros São Paulo e Rio de Janeiro, e a sua vontade de dar espaço a histórias e personagens que talvez nunca tenham sido contadas. Com especial interesse pelas narrativas de descolonização e de identidades alternativas, reflectindo também um desejo (ou necessidade) de integração e aceitação.

A presença brasileira no Queer Lisboa deste ano propõe duas antestreias de dois títulos que chegarão às salas brasileiras no início de 2026 que recusam as narrativas queer formatadas. Salomé, do pernambucano André Antônio (Competição de Longas-Metragens, São Jorge, dia 22 às 22h), grande vencedor do festival de Brasília de 2024, brinca com o cinema de terror e o giallo italiano; Morte e Vida Madalena, do cearense Guto Parente (Sessões Especiais, São Jorge, dia 24 às 19h15), premiado há poucos meses no FIDMarseille, assume-se como comédia sobre os bastidores de uma rodagem.

Não são os únicos títulos brasileiros no programa; este fim-de-semana exibiram-se o biopic de Ney Matogrosso, Homem com H, do paulista Esmir Filho, grande sucesso de bilheteira no Brasil, que os interessados podem já encontrar em streaming na Netflix; e Ato Noturno, dos gaúchos Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, sobre um romance fetichista entre um aspirante a actor e um candidato à presidência da câmara em Porto Alegre, que se estreou no festival de Berlim. Mas Salomé e Morte e Vida Madalena propõem outra, e bem mais intrigante, abordagem: é a sensibilidade com que Antônio e Parente filmam as suas histórias que é queer, mais do que o seu conteúdo.

Salomé inspira-se livremente na peça de Oscar Wilde sobre a história bíblica da tentativa de sedução de João Baptista pela princesa Salomé e da sua terrível vingança. Cecília (magnética Aura do Nascimento) é uma modelo de sucesso que regressa ao Recife para passar as festas com a mãe religiosa (a actriz trans Renata Oliveira), e apaixona-se por João, filho de uma vizinha, que ganha dinheiro de modo esquivo e secreto. Segunda longa do integrante do colectivo Surto & Deslumbramento, Salomé invoca as atmosferas saturadas do giallo italiano ou dos filmes de terror de Dario Argento e Mario Bava, banhando tudo num verde néon quase tóxico, tratando a narrativa como uma rendição à luxúria erótica paredes meias com o fetichismo.

Mas o evidente talento de André Antônio para construir ambientes e imagens não se estende a outras áreas. Este é um filme formalista e maneirista em excesso; falta-lhe a ligeireza despachada do cinema de género, substituída por uma lenta sisudez que insiste em ser significativa, sem que a sua narrativa o sustente e sem que a presença fortíssima de Aura do Nascimento o compense.




Salomé, do pernambucano André Antônio
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Morte e Vida Madalena (co-produzido pela portuguesa C.R.I.M.) é outra coisa: uma comédia sobre os bastidores do cinema tal como vividos pela Madalena do título, encarnada pela actriz trans Noá Bonoba como uma fulana farta de bater com a cabeça nas paredes para produzir filmes. Madalena está grávida de oito meses e vai dar início à rodagem do último guião do seu pai recém-falecido, a ser dirigida pelo ex-marido (que não é pai da criança): um filme de ficção científica rasca com o título O Futuro a Deus Pertence.

Tudo começa a correr mal quando o ex-marido desaparece sem deixar rasto, o actor principal está mais interessado em transar do que em representar, e toda a gente lhe diz que só ela, que nunca dirigiu um filme, pode assumir a realização. O que se segue é uma descrição de “tudo o que pode correr mal numa rodagem”, contada com um humor dessíncrono e bondoso que se percebe ter vindo directamente da experiência de Guto Parente (que filma há vinte anos e assina aqui a sua décima longa). Um elogio do desenrascanço à brasileira, dobrado de auto-compreensão de uma personagem que descobre a força que não pensava ter enfrentando os seus medos e assumindo abertamente a sua falta de paciência para com os clichés.

Essa é também a atitude de Morte e Vida Madalena perante os “filmes de bastidores”. E é a atitude destes dois filmes para com a ideia formatada do que pode ser o cinema queer: pode ser o que quem o fizer quiser que seja.