O estudo foi prometido ainda antes de tomar posse e, nove meses depois, chegaram as conclusões. Donald Trump ligou esta segunda-feira o consumo de paracetamol durante a gravidez ao “crescimento meteórico” do número de casos de autismo no país, numa conferência de imprensa na Casa Branca, acompanhado pelo Secretário da Saúde Robert F. Kennedy Jr. e o administrador dos Centros de Serviços Medicare e Medicaid Mehmet Oz. Obstetras e ginecologistas já vieram dizer que o anúncio de Trump é “irresponsável” e que pode confundir as grávidas.
“Eu acredito que não estavam a deixar as pessoas saber aquilo que já sabiam”, afirmou o Presidente dos Estados Unidos da América, referindo-se às farmacêuticas responsáveis pela produção destes medicamentos. Trump, que cita o estudo conduzido pelo Departamento de Saúde norte-americano, destaca o “aumento de mais de 400%” dos casos de autismo nos EUA. “Passaram de um em 20.000, para um em 10.000 e agora um em cada doze pessoas”, sublinha.
“Em vez de atacar quem faz perguntas, deviam agradecer a quem procura as respostas”, continua o Presidente, ao lado de RFK Jr, que construiu uma plataforma dedicada à investigação de causas para o autismo e de partilha de estudos que justificam o ceticismo com as vacinas. Apesar de também mencionar esta questão nas suas declarações, o grande foco da conferência de imprensa foi “uma das maiores descobertas médicas da história do país”: a ligação entre o consumo de paracetamol durante a gravidez e o aumento dos casos de autismo.
“Idealmente, não se toma de todo o Tylenol [medicamento em que o princípio ativo é o paracetamol]”, aconselha Trump, mas se as grávidas “não conseguirem suportar” as dores, então devem consultar o seu médico e tomar “o mínimo possível”. “Só deve ser mesmo tomado se não houver alternativa”, continua, ao mesmo tempo que reconhece que não existe outra alternativa nas farmácias com o efeito analgésico e antipirético para aliviar a dor e reduzir a febre deste medicamento.
Na mesma linha, dá o exemplo de comunidades norte-americanas que não tomam este medicamento e “que praticamente não têm” casos de autismo, como os Amish, que são conhecidos pelo seu estilo de vida mais simples e sem qualquer uso de tecnologia moderna. Menciona também Cuba e outros países do mundo que refere não terem dinheiro para comprar paracetamol e que também têm consideravelmente menos casos de autismo do que os Estados Unidos da América. Nas suas declarações, o Presidente não menciona detalhes de como o estudo foi realizado ou como se chegou a estas conclusões, mas repete: “Se nada de mau pode acontecer, o melhor é não tomar”.
Este foi o mote também quando desviou o tema de conversa para as vacinas. “A vacina VASPR [sarampo, papeira e rubéola combinadas] deve ser tomada em separado”, diz Trump, justificando “com base no que sente”. Menciona a vacina para a varicela, que também estava agrupada, mas que acabou por ser autonomizada. “Individualmente é okay, e quando se mistura pode ficar melhor. Pode não ter um grande impacto, mas também pode ter”, acrescenta.
Refere também o plano de vacinação dos norte-americanos que, à nascença, “têm 80 vacinas diferentes a ser injetadas numa criança”, comparando-a com a “injeção em cavalos”. Pede para se retirar o mercúrio e o alumínio das vacinas atualmente em circulação, e que se divida a sua toma “por cinco ou quatro anos”, com doses significativamente menores. Desaconselha, ainda — “não há razões para se dar” — a vacina da Hepatite B a um bebé, uma vez que é “sexualmente transmissível”. “Devemos esperar até à criança ter 12 anos”, aconselha.
Foi anunciado, também, que a Food and Drug Administration (FDA), a entidade responsável por autorizar a entrada em circulação de medicamentos, iria aprovar “nas próximas semanas” um fármaco para ajudar no tratamento de crianças autistas. “Não é uma cura para o autismo”, sublinham os responsáveis pelo National Institute of Health (NIH), FDA e Dr. Oz numa peça de opinião publicada esta noite no POLITICO. Citando estudos e ensaios clínicos feitos, revelam que cerca de 60% das crianças com deficiências de Vitamina B9 diagnosticadas com autismo, veem um aumento na sua capacidade de comunicação verbal caso sejam medicados com leucovorina.
Este medicamento, também conhecido como ácido folínico, é atualmente utilizado como adjuvante em certos tipos de quimioterapia. A sua utilização está aprovada pela FDA neste sentido, o de contrariar os efeitos tóxicos de algumas formas de combate ao cancro, que bloqueiam a absorção de vitamina B9. A Autism Science Foundation considera que a investigação sobre a utilização deste medicamento como forma de possível tratamento de certas condições associadas ao autismo ainda está numa fase “muito preliminar” e que são necessários mais estudos antes de se tirarem mais conclusões.
Contudo, os responsáveis na administração Trump justificam esta antecipação na aprovação do fármaco — “o corte da burocracia regulamentar” — face aos anos que demoram a ser publicadas as conclusões dos ensaios clínicos, referindo que os pais estão “impacientes”.
O ceticismo associado às vacinas foi a principal bandeira que catapultou Robert F. Kennedy Jr até ao leme do Departamento da Saúde dos Estados Unidos da América. Durante anos, construiu uma plataforma em que referia estas mesmas preocupações anunciadas esta segunda-feira por Donald Trump. Apesar de agora serem reveladas como conclusões finais do “maior estudo de sempre” sobre o autismo, não foram avançados dados que permitam verificar o que potenciou tais ilações. O universo do estudo, os métodos ou até mesmo as condições em que foram analisados os diferentes fatores permanecem desconhecidos, algo que é reconhecido até pela administração, que admite que não existe “consenso científico” sobre o assunto.
Sem apresentar novas descobertas, o estudo parece mais uma revisão sistemática de investigações já publicadas. Por exemplo, um estudo que é fortemente associado a esta corrente de pensamento — e já citado por Kennedy — refere esta ligação apenas em cenários de utilização excessiva e consecutiva num período superior a 28 dias. Este trabalho não refere exatamente o que considera ser “excessivo”, mas não encontra qualquer ligação entre a dosagem “normal” e os casos de autismo — não havendo evidências que justifiquem a recomendação de Trump para cessar o consumo de paracetamol.
Na peça de opinião publicada no POLITICO, os diferentes responsáveis pelas pastas da Saúde norte-americana não partilham o alarmismo de Trump. “Nos últimos anos, evidências observacionais sugeriram que quando as mães tomam paracetamol durante a gravidez existe uma correlação com o subsequente diagnóstico de condições como autismo e défice de atenção”, referem. Mas “ao mesmo tempo, também reconhecemos que a literatura continua a evoluir e que as evidências de estudos de controlo familiar não conseguiram encontrar uma correlação”, escrevem. Destacando a falta de alternativas ao paracetamol no mercado farmacêutico norte-americano — e o facto de febres altas nas grávidas poderem ser um risco para a saúde do bebé —, dizem que o consumo de paracetamol deve ser feito “com sensatez” durante a gravidez — uma prática corrente e praticada pelos obstetras.
O colégio americano de obstetras e ginecologistas, a principal organização de profissionais do setor nos Estados Unidos, diz que o anúncio de Trump é “irresponsável” e que poderá transmitir uma mensagem “nociva e confusa” às grávidas. “O anúncio feito pela HHS (Human and Health Service, o departamento de Saúde dos EUA) não é apoiado por evidências científicas completas e simplifica perigosamente as múltiplas e complexas causas dos problemas neurológicos em crianças”, escreveu o presidente da organização Steven Fleischman, num comunicado citado pelo The Guardian.
Já a empresa responsável pela produção do medicamento nos EUA, Kenvue Inc, emitiu também uma nota a “discordar fortemente” com a informação avançada pela administração Trump. “Estudos científicos comprovam claramente que tomar paracetamol não causa autismo”, afirmam.