Três anos e meio depois da invasão, o recrutamento está cada vez mais difícil. Apesar dos esforços do governo ucraniano, muitos preferem ajudar ficando longe da linha de frente?

Muitas vezes, quando dizemos que o exército ucraniano está com dificuldades de recrutamento, queremos dizer que os ucranianos não querem ir combater. Mas, na verdade, o exército ucraniano está com dificuldades também pelo facto de as forças armadas do país necessitarem de estar em constante crescimento. Porque a Rússia está a colocar cada vez mais homens na guerra. É difícil porque os homens mais preparados já estão na linha da frente. Na sociedade ucraniana muitos dos que se viam com uma arma nas mãos já têm uma arma nas mãos. Ou já foram vítimas desta guerra. Hoje, quando o exército precisa de recrutar, são pessoas que nunca seguraram uma arma, que nunca prestaram serviço militar, que não se imaginavam a combater. O caminho para transformar estes civis em combatentes é longo. É preciso tranquilizar mais, explicar mais, treinar mais, numa altura em que faltam recursos. Mas também há uma franja inteira de ucranianos que dizem “já estamos a defender o nosso país. Só não estamos na linha da frente.” Temos os que angariam fundos para a compra de armas. Os drones são só parcialmente financiados pelo exército, como também acontece com os veículos que os militares utilizam na frente. Portanto, se é um dos que abastece o exército, está a participar na defesa. Se é um dos que inovam, está na defesa. O mesmo se cumprir uma função que poderia ser assumida pelo exército, como o recrutamento, primeiros socorros na linha da frente, retirada de feridos, tudo isto também é feito por civis, sobretudo no âmbito de organizações não governamentais. Essa é uma das características desta guerra. Mas não está isenta de tensões. Quando se está na retaguarda, a recolher dinheiro mas a viver uma vida tranquila, é claro que se pode ser percebido de forma menos positiva pelos combatentes na linha da frente, que estão a arriscar a vida. Quem merece ficar atrás e quem merece ir para a frente? É um debate terrível que nenhuma sociedade deveria ter de fazer. Quem merece morrer e quem merece viver?

Fala no livro da ideia de que “o Estado somos nós. O exército somos nós”. Essa força coletiva vale quase tanto como a ajuda internacional – armas e dinheiro – enviada à Ucrânia, para haver um país unido neste esforço de guerra?

Os ucranianos estão unidos em torno da ideia de que a Rússia é uma ameaça que deve ser combatida e, ao mesmo tempo, são extremamente críticos de qualquer decisão do seu governo que não corresponda à sua visão das coisas. Portanto, temos vozes críticas, protestos, as redes sociais fervilham de debates sobre esta ou aquela decisão. Também temos isso nas nossas sociedades, mas onde os ucranianos são diferentes, é na ideia de “o Estado, somos nós”. Eles sabem que o seu Estado é fraco e acreditam que se este está a fazer algo errado, terá de ser o povo a tomar as rédeas. Isto pode ser percebido como uma fragilidade, mas, ao mesmo tempo, é uma força. Não esperar nada do Estado e considerá-lo nosso.

Desde o primeiro dia, o presidente Volodymyr Zelensky tornou-se no rosto da resistência ucraniana. O seu empenho é um dos pilares que mantêm a sociedade ucraniana unida?

Zelensky não lidera a nação, ele representa a nação. Ou seja, ele representa a sua nação no panorama internacional. Aos olhos do mundo, a Ucrânia é Zelensky. E nisso, de facto, é a figura daquele que luta constantemente, que defende o seu país, inclusive em situações de grande fragilidade, como o episódio na Casa Branca. Mas para os ucranianos, Zelensky é apenas a personificação de quem são. Ele é a imagem do ucraniano comum; não é um líder que lidera a nação. Por outras palavras, se por alguma razão Zelensky já não estiver lá amanhã, e se a figura que o substituir for menos carismática, isso não alterará a resiliência da sociedade ucraniana. Não depende da figura de Zelensky, mas Zelensky é uma espécie de modelo dessa resistência.

Existe uma minoria russa e russófona na Ucrânia, cuja segurança Putin usou como pretexto para invadir o país…

Não, não há.

Como assim?

Bem, nunca houve uma minoria russa. A minoria russa é constituída por pessoas de origens diversas, porque a União Soviética era um país de migração, e a Ucrânia era um país de chegada de migrantes, devido ao seu tecido industrial. As indústrias trouxeram um grande número de pessoas de todo o mundo, incluindo russos, e depois outras migrações dentro da União Soviética ao longo de décadas. Mas nunca houve entre as pessoas de origem russa na Ucrânia o sentimento de pertencerem a um grupo separado.

Não diria então minoria, mas população russa?

Há cidadãos ucranianos de origem russa.

E qual é a posição deles nesta guerra?

Exatamente a mesma que a dos ucranianos de origem ucraniana. Se analisar o perfil daqueles que representam a resistência hoje ou que estão a lutar, encontrará tanto pessoas de origem ucraniana como de origem mista, de origem russa, de origem tártara, etc. O próprio Zelensky é um representante da minoria judaica, e russófona, no país. Os ucranianos não têm uma visão étnica da sua nação, mas sim uma visão cívica, e a origem pouco importa. Quando faço entrevistas na Ucrânia, o meu passaporte é conhecido, sou de Moscovo, o que não é um problema para eles, porque pessoas nascidas em Moscovo, no seu país, têm muitas. E não serão consideradas menos ucranianas se cresceram no país, viveram no país e escolheram a Ucrânia. Não há identificação, nem pelo apelido, nem pelas origens.