Depois de 35 anos dedicados às artes cênicas, o ator Gustavo Machado expande seus horizontes e mergulha na literatura com seu primeiro romance, Mordido, publicado sob o pseudônimo Machado Urbano. O livro, escrito durante a pandemia, é um reflexo de um período de solidão e inquietação, mas também de libertação criativa.
“Precisei escrever para dar conta do que estava sentindo: sozinho, no centro de São Paulo, com minha família distante, as mortes em massa, aquele governo grotesco no poder… A internet dominando tudo. Parecia que entrávamos em uma distopia”, revela Gustavo. O romance acompanha um artista punk hedonista que abandona a carreira de ator e se lança em uma espiral autodestrutiva.
O codinome Machado Urbano não é apenas um jogo de palavras, mas uma provocação. “Um machado no contexto urbano sugere algo fora do lugar. Quem carregaria um machado na cidade? Um psicopata?”, brinca. A escolha também homenageia Machado de Assis, coroando-se como um novo “Machado” na literatura brasileira. Urbano, na verdade, é o último sobrenome de Gustavo.
Sem rótulos
Prestes a completar 52 anos, Gustavo Machado é um artista que resiste a rótulos. Com mais de 50 peças de teatro, filmes premiados e uma banda (A Baderna Baila), ele não busca equilíbrio, mas sim o “desequilíbrio criativo”. “A ideia de equilíbrio não é muito artística. O ‘equilíbrio precário’ da dança é muito mais inspirador”, diz o carioca.
Atualmente, ele vive dois personagens antagônicos: o delegado Novaes, em Guerreiros do Sol (Globoplay), um policial cruel e egoísta, e o senador Fábio, em Paulo, o Apóstolo (UniverVideo), um homem gentil e apaixonado. “Trabalhar em polos tão distintos é uma alegria. O ator é um instrumento que precisa tocar todas as notas, chamadas ‘sentimentos'”, reflete o virgiano.
A música sempre esteve em sua vida. Na adolescência, bandas de rock e MPB influenciaram mais sua formação do que o cinema ou o teatro. Hoje, com A Baderna Baila, ele encontra uma fusão entre o palco e o palco musical. “Meu guitarrista disse: ‘Você se aquece pro show como se fosse fazer uma peça!’. E é isso: a peça é um show, e o show é uma peça”, afirma.
Além da banda, ele prepara Duelos consigo, um pocket-show que mistura poemas e canções autorais, e integra o coletivo Gente Lírica, que une música, poesia e vídeo-arte.
Vencedor do Kikito de Melhor Ator (Gramado, 2007) e do APCA (2008), Gustavo encara os reconhecimentos com leveza: “Se você deixar os prêmios afetarem sua arte, está arruinado. Eles vêm e não vêm. O importante é continuar criando”. Seus planos para 2026 incluem lançar um livro de poemas (Duelos consigo), adaptar Mordido para um espetáculo solo, expandir a banda e o coletivo Gente Lírica, e finalizar projetos no cinema, como A voz que resta.
“Quero realizar o máximo de projetos pelos quais tenho desejo real. É isso que me move”, conclui Machado, que, com uma carreira marcada pela versatilidade e coragem artística, prova que a verdadeira essência do artista está na liberdade de criar — seja no palco, nas telas ou nas páginas de um livro.
Mordido já está disponível nas livrarias pela EditoRia.
Entrevista | Gustavo Machado
Você vai lançar seu primeiro romance, Mordido, após 35 anos de carreira como ator. Qual foi o processo de criação desse livro?
Começo a escrever esse livro na pandemia – e nisso não há nenhuma originalidade, muita gente teve, nesse período, muito tempo e extrema necessidade de escrever uma escrita mais pessoal e libertadora. Eu precisei escrever muito para dar conta do tanto que estava sentindo: sozinho, morando no centro de São Paulo, com minha filha vivendo em Nova York com a mãe, minha mãe e irmão no Rio de Janeiro, as notícias de internações e, logo depois, as mortes em massa, aquele governo no poder. A internet entrando definitiva e implacavelmente em nossas vidas… Para mim, parecia que estávamos entrando num lugar bastante distópico da História da Humanidade. Inventar, mergulhar e me deleitar no fluxo de um pensamento cruelmente divertido, caótico-catártico, de um personagem radicalmente livre, um punk hedonista, meio bossa nova e rock and roll… foi uma das minhas salvações psíquicas para aquele período.
E por que o codinome Machado Urbano?
O codinome, na verdade, é meu nome (Gustavo Machado Urbano). Só que dei um descanso pro Gustavo e botei pra jogo o Urbano. Acho que um machado urbano é uma imagem interessante, sugere um objeto fora de seu contexto natural, pois um machado é um objeto quase que exclusivo do meio rural. Quem teria um machado num contexto urbano? Um psicopata? Além, claro, de brincar com um ícone da nossa Literatura, o Machado de Assis… Quis me coroar também um Machado na Literatura, um Machado Urbano.
Você é conhecido por sua versatilidade em diferentes áreas das artes (teatro, cinema, TV, música). Como você equilibra essas diferentes paixões e projetos?
Na verdade, a própria ideia de equilíbrio não é nem muito apaixonada, nem muito artística. O desequilíbrio (ou, como dizem na dança, o equilíbrio precário) é muito mais inspirador. E é isso mesmo, não há nenhum equilíbrio, há a busca de equilíbrio: tentar equilibrar todas as paixões artísticas que me atravessam (na música, na literatura, na dramaturgia…). Eu tenho que tentar realizar o máximo de projetos pelos quais tenho desejo real e duradouro. Mesmo que sejam projetos independentes, com parceiros diferentes, eles acabam por estruturar na totalidade esse Artista que sinto que sou e que quero ser. É uma questão de apurar, experimentar, de maneiras diferentes, o meu olhar poético para o mundo.
Atualmente, você está atuando em Guerreiros do Sol e Paulo, o apóstolo. Quais são os principais desafios e satisfações de interpretar personagens tão diferentes?
Os desafios são justamente as satisfações. Um personagem (Novaes) é violento, cruel, ignorante e prepotente, que tem como traço mais marcante o egoísmo (capacidade de amar a si mesmo mais que a qualquer outro). Já o outro (Fábio) é gentil, controlado, empático, e tem, como característica principal, o imenso amor por uma mulher. Trabalhar em polos tão distintos é uma alegria pra qualquer ator. O trabalho de um ator/atriz é se desenvolver como um instrumento (com opinião, mas sem julgamento) que toca todas essas notas (chamadas sentimentos).
Sua banda, A Baderna Baila, é conhecida no circuito underground de São Paulo. Como você vê a relação entre a música e o teatro em sua carreira?
Na minha adolescência, as bandas e artistas da música (do Rock e da MPB, em especial) fizeram muito mais minha cabeça (pra usar uma expressão da época), do que os ícones do cinema (que eu também já curtia, mas não tanto quanto os da música). O teatro e seus ícones entraram um pouco mais tarde no meu imaginário artístico. Então, quando virei ator, logo depois, aos dezoito, a minha atitude era, menos a de um jovem ambicioso ator, e mais a de um artista criador (meio Caetano, meio Renato Russo), e nos meus grupos e parcerias de teatro que criei, minha referência (em espírito) eram as bandas de garagem. Creio então que desde sempre eu quis viver esse espírito punk rock na minha vida teatral. O que sinto hoje, que agora vivo também essa realidade de shows e gravações da banda, é que o cantor é meio que um personagem que estou criando-atuando. Dia desses, o guitarrista da banda (Nani Sanchez) me falou: “Mano, você se aquece pro show como se fosse fazer uma peça!”. Acho que é isso mesmo: A Peça é Show e o Show é peça!
Dos mais de 50 espetáculos, qual é o projeto teatral que você considera mais marcante e por quê?
Se realmente fosse possível responder a essa pergunta, eu diria que foram duas: Teatro de Terror, RJ (por ser minha escola) e Canção de Cisne, SP, de Vadim Nikitin, (por ser minha formatura).
Você também dirige peças e filmes. Qual é o processo de criação e direção que você segue?
Não há um processo específico (nem técnica, nem elaboração) de antemão, e nada que, conscientemente, amarre conceitualmente os diversos trabalhos. Cada projeto tem suas inspirações, anseios e referências, e o processo (o que será exigido de elaboração) será criado totalmente a partir das dificuldades e facilidades da sua realização, que são sempre muito diferentes também. Em comum, há apenas a vontade de que o resultado seja poético, sincero e belo (artisticamente falando).
Como reconhecimentos como o prêmio APCA e o Kikito de Melhor Ator afetam a sua carreira e confiança como artista?
Sim, prêmio, elogio e convite são muito legais. Em certos momentos ajudam mesmo a te dar dimensão da sua relevância e capacidade, que, dependendo das flechadas de um destino ultrajante, a gente pode até esquecer que tem. E não! Se você deixar isso realmente te afetar como artista, você está arruinado. Pois o prêmio, o elogio e o convite às vezes vêm sim, mas, na maioria das vezes, eles não vêm! E se você dá muito poder pra eles quando vêm, o que será da sua confiança quando não vierem? Como eu disse antes, a dança é tentar conquistar todos esses equilíbrios. Não se levar muito a sério e saber que seu trabalho é a coisa mais séria do mundo, ao mesmo tempo.
Você está preparando um poético-pocket-show chamado Duelos Consigo. O que podemos esperar desse projeto?
Poemas e canções de minha autoria. Creio que é exatamente a fusão explícita dessas minhas veias de ator, diretor, autor, poeta, compositor, cantor, músico… Claro que tenho muito mais domínio de uns ofícios do que de outros. Mas é nesse caldeirão que estou trabalhando. E há ainda a possibilidade de dividir isso tudo com outro artista… veremos!
Olhando para o futuro, quais são seus planos e projetos que você está ansioso para desenvolver?
Além de fazer crescer o que já está rolando (a banda A Baderna Baila, o livro Mordido, o filme A voz que resta e minha carreira de ator), quero também estrear esse espetáculo Duelos Consigo, editar e lançar um livro de poemas (com o mesmo título: Duelos consigo), estrear um coletivo de arte de que participo, chamado Gente Lírica lançando um EP, um show e uma videoarte e que conta também com a participação da Laíze Câmara, minha namorada e atriz de Guerreiros do Sol (Francisca), e ainda fazer um espetáculo-solo a partir do meu livro Mordido (que terá o mesmo título). Tudo isso até meados de 2026.
Jornalista formado no Sul de Minas, com atuação de 20 anos em Brasília