O Grande Irmão está de olho em vocês, meus sete amigos. Um poder central acompanha nossos passos, palavras e até pensamentos. Essa impressão, que nos parece tão dolorosamente viva, é o ponto de partida de uma das maiores obras literárias do século passado: 1984, de George Orwell.
O cenário de 1984 é um mundo às avessas, onde a realidade se inverte e as palavras perdem seus significados originais. O modelo de governo por trás de tudo isso é o socialismo.
Winston Smith, um homem comum, com um nome que evoca o primeiro-ministro da Segunda Guerra e o sobrenome inglês mais comum de todos, é nosso guia nesse inferno. Ele nos conduz a um labirinto de mentiras fabricadas no Ministério da Verdade, um lugar em que o passado vai sendo reescrito a cada dia para que o Partido-Estado, onipotente e onipresente, esteja sempre certo. Notícias que desagradam simplesmente deixam de existir, incineradas em um presente interminável.
Orwell, como um profeta do nosso tempo, desenha um mundo de vigilância constante. Em cada casa, a teletela da coletividade está perpetuamente ligada, espionando a intimidade dos cidadãos. O objetivo é simples e aterrorizante: impedir o crimipensar, ou seja, o crime de pensar algo que desagrade o Partido. Não há vida privada, não há segredos. Há apenas a uniformidade do consenso fabricado.
A rebelião de Winston não começa com uma bomba, mas com o simples ato de escrever. Em um cubículo, escondido de uma teletela, nas páginas de um livro em branco, com uma caneta-tinteiro que o conecta a um passado quase esquecido, ele comete a primeira e maior transgressão de sua vida. Escreve repetidamente:
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
ABAIXO O GRANDE IRMÃO
Nesse momento, ele entende a si mesmo como um indivíduo capaz de livre-arbítrio. E sabe que, ao fazer isso, é um homem marcado para morrer.
A partir daí, o amor e a amizade entram na vida de Winston como crimes. Em um dos trechos mais sublimes do livro, Winston tem uma epifania de autoconsciência ao observar um peso de papel de cristal. Dentro daquele pequeno globo de vidro, com seu fragmento de coral, ele enxerga a si mesmo e a sua amada Julia “fixados numa espécie de eternidade no coração do cristal”.
Pela primeira vez, Winston se percebe como uma alma individual, um ser vinculado à eternidade. Nesse momento antológico, o supostamente ateu George Orwell faz seu protagonista chegar muito perto de fazer uma oração a Deus. Não poderia haver afronta maior para o Partido-Estado!
Nos últimos anos, a distopia de 1984 vem se aproximando cada vez mais da realidade cotidiana. A frase “Faça Orwell voltar a ser ficção” se popularizou durante a pandemia, e não sem motivo.
A obra se mostrou assustadoramente profética. E o maior sinal disso talvez seja o fato de que a leitura de 1984 foi considerada perigosa e potencialmente radicalizadora em um relatório do governo inglês. Em outras palavras, segundo esse relatório, ler certas obras transformaria o cidadão em suspeito de insurgência, uma não-pessoa, para usar a terminologia do Partido. Shakespeare, Tolkien, Chesterton, C. S. Lewis e Orwell estão entre esses autores potencialmente subversivos.
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A manipulação da linguagem, tema central do livro, também espelha a realidade atual. A novilíngua imposta pelo Partido representa o controle da linguagem em nossos dias
Afinal, como diz o slogan do Partido: “Quem controla a linguagem, controla as ideias, e quem controla as ideias, controla as ações”. Se a literatura é o condensado imaginário da experiência de uma sociedade, sua destruição nos obriga a adotar a linguagem do sistema de poder.
Orwell, um escritor que escapou por pouco da execução nas mãos de comunistas na Espanha, sabia bem o que estava escrevendo. A ideologia oficial do regime na Oceania não é o comunismo, mas o socialismo inglês (em novilíngua, Socing). Podemos ver nisso uma referência velada à Sociedade Fabiana, criada em 1884 (notem a data), por um grupo de intelectuais da elite britânica.
A Sociedade visava à implantação gradual do regime socialista e à criação de um governo mundial e, nesse sentido, é possível relacionar as três superpotências beligerantes de 1984 com as três forças que disputam hoje o poder mundial: o globalismo ocidental, o comunismo russo-chinês e o bloco islâmico.
Embora as potências de 1984 sejam geograficamente circunscritas e, de modo diferente, a influência das forças globais atuais desconheça fronteiras, o mapa do mundo traçado por Orwell demonstra mais uma vez o caráter profético do autor.
A tragédia de Winston Smith, que sucumbe ao torturador O’Brien, parece uma condenação para todos que acreditam na liberdade. O’Brien, na sala de tortura, oferece a imagem mais sombria do futuro: “Imagine uma bota esmagando um rosto humano para sempre”.
Este é o mundo de 1984, um inferno moderno, onde a vida é reduzida à matéria e ao poder político, sem vínculos com o passado ou compromissos com as gerações futuras. Ainda assim, o funcionário do Ministério da Verdade, nosso Virgílio nas profundezas da distopia, soube deixar-nos pelo menos uma mensagem alentadora:
“Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós — a um tempo em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito: da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento — saudações!”
O livro em branco de Winston Smith agora repousa em nossas mãos. Talvez nele ainda caiba uma oração.
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