No confinamento de março de 2020, com as escolas fechadas, o Ministério da Educação lançou o programa Estudo em Casa, transmitido pela RTP Memória e RTP2. Nessa altura percebi, de forma clara, que os canais em sinal aberto podiam ser, se assim quisessem, uma verdadeira fonte de aprendizagem. Passaram cinco anos. Hoje, o que encontro nalguns canais portugueses são verdadeiras escolas de machismo.
Recordo um episódio do programa “Casados à Primeira Vista”, emitido há uns meses: perante a entrada da noiva, um homem comenta com outro: “Já lá foste?” Não era direto. Não era improviso. Foi emitido tal e qual, depois da edição. E, nos episódios seguintes, não houve qualquer retratamento ou advertência. Pelo contrário, já noutra ocasião, ouvi a apresentadora dirigir-se a um concorrente cujo casamento não resultou: “Desculpa dizer isto, mas eles disseram com todas as letras que tu eras corno… A tua apatia em relação a esses comentários era quase como que acatá-los…” O comentário foi recebido com naturalidade, como se fosse algo banal. E logo a seguir, uma outra concorrente acrescentava: “Se me dissessem que eu era corna, eu virava a mesa, virava este programa e a casa.”
Ora, quando frases como estas passam em prime time, na hora em que muitas famílias portuguesas estão sentadas no sofá, como nos podemos admirar das estatísticas da violência doméstica? A televisão não entretém apenas, mas educa, legitima e confirma padrões de comportamento. E no caso, padrões altamente machistas. A ideia de que a parceira é propriedade privada continua viva. E quando a mulher é o “terreno em causa”, espera-se ainda que seja imaculado, virgem, inacessível. É que ligarmos a televisão e ouvirmos a instigação, em jeito de “Então és corno e não fizeste nada?”, remete para a velha ideia de que a traição feminina exige vingança masculina, em que o homem enganado tem todo o direito de lavar a honra com os próprios punhos.
A linguagem autorizada nos ecrãs revela duas ilações: a primeira, a de que se perdeu o bom senso; a segunda, a de que vale tudo pelas audiências, mesmo à custa da dignidade de quem lá está. A mesma televisão que noticia, em tom grave, os números da violência doméstica, com os pivôs a destacar o crime que mais mata em Portugal, é a que dá palco a este tipo de comentários.
E aqui está a contradição que mais me inquieta. Muitas apresentadoras portuguesas já foram rotuladas de tudo e mais alguma coisa nas redes sociais. Espanta-me, por isso, que emprestem rosto e voz a discursos tão vazios, quase como fantoches de um guião que as diminui. E é este o retrato que fica: uma televisão que entretém à custa da humilhação, que educa para o machismo e que continua a reforçar a ideia de que a mulher é sempre território a vigiar ou a mostrar.
E não é apenas no campo do entretenimento que a leitura desigual da mulher se faz notar. Alguém me explica que critério jornalístico está por detrás da escolha do segmento Polígrafo da SIC, em destacar uma fotografia de Greta Thunberg manipulada digitalmente para mostrar um decote falso? Fake news não é isto. Isto é outra coisa, é dar palco à imagem manipulada, ou seja, mais desinformação com viés misógino. Quando se gasta tempo com o decote falso da Greta, não é a desinformação que está a ser combatida, mas sim o imaginário machista a ser reciclado. No fundo, é uma escolha editorial com cheiro a clickbait televisivo: pega-se numa figura mediática jovem, mulher e polarizadora, e dá-se palco a um boato que, em si, só perpetua a lógica de ridicularização.
Seja na informação ou no entretenimento, ainda há muito caminho a percorrer para libertar a televisão dos padrões machistas que a prendem ao passado e persistem no presente.