Num território destruído, quase sem comida e sem água, estudar deixou de ser uma prioridade para muitos palestinianos em Gaza. Mas, no meio do caos, há estudantes que continuam a aprender em escolas improvisadas ou a fazer exames online para conseguirem terminar os seus cursos – isto quando conseguem aceder à Internet.

É o caso de Sharaf Odeh, de 26 anos, que usa o telemóvel e a fraca ligação à Internet para assistir a aulas online para tentar concluir o seu mestrado em Administração de Empresas Digitais. Estuda num apartamento lotado onde vive com a sua família, na Cidade de Gaza, com crianças irrequietas à sua volta e com o som dos bombardeamentos ao longe. Deslocado da sua casa em Shujaiyeh, vê na educação a sua única esperança para o futuro, mas nunca esquece que pode não sobreviver ao próximo ataque de Israel. “Agarramo-nos à esperança de que o amanhã será melhor, mas esta é a nossa realidade e não podemos fugir dela.”

“Não sou nenhum super-herói”, ressalva Sharaf, numa entrevista ao diário israelita Haaretz feita por videochamada, que chega a ser interrompida por um bombardeamento. “Muitos estudantes queriam prosseguir para o ensino superior, mas é caro. Se eu não tivesse trabalhado antes da guerra, não estaria a estudar agora. Não usaria o dinheiro da minha família para a educação em vez da sobrevivência.”

Em vez de correrem para a escola, as crianças e adolescentes procuram agora comida, água e mantimentos para as suas famílias. “As crianças de Gaza tiveram a sua infância roubada”, afirma Juliette Touma, porta-voz da agência das Nações Unidas para os refugiados palestinianos (UNRWA), citada pelo jornal Le Monde. “Quanto mais tempo ficarem longe da escola mais provável é que se tornem uma geração perdida, em risco de exploração, casamento precoce e recrutamento por grupos armados, como vimos acontecer noutros países em conflito.”




A estudante de engenharia informática Shahed Abu Omar a estudar no seu telemóvel
REUTERS/Mohammed Salem

Em Gaza, 97% das instituições de ensino foram afectadas pelos bombardeamentos, segundo uma avaliação feita através de imagens de satélite pelo Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários. Os dados mostram que 91% destas escolas e universidades precisam mesmo de reabilitação ou uma reconstrução completa para voltarem a estar funcionais.

Longe da sua casa e sem um lugar adequado para estudar, Sharaf sente que está a ficar para trás na matéria – mas tem conseguido submeter todos os seus trabalhos dentro do prazo. O abrigo em que está tem painéis solares, que só produzem energia durante o dia. “Por vezes tenho de trabalhar durante o dia, portanto costumo estudar à noite. E aí não posso usar a energia solar, tenho de estudar no meu telemóvel”, conta. O estudante gostava de ter um tablet para ser mais fácil estudar, mas o preço é demasiado elevado. “Nem estou a tentar muito ter um, porque não sabemos se vamos ficar aqui, se vamos ter de ser retirados novamente, ou se estaremos sequer vivos. Nada é seguro.”

Segundo um artigo publicado na semana passada no Haaretz, são cerca de 90 mil os estudantes universitários em Gaza que tiveram de interromper os estudos por causa dos bombardeamentos e todas as 12 universidades de Gaza foram destruídas ou danificadas pelas Forças de Defesa de Israel (IDF).

“A vida académica palestiniana foi quase completamente destruída e precisará de muitos anos para se reconstruir”, escrevia num artigo de opinião a professora Anat Matar, do departamento de Filosofia da Universidade de Telavive, recordando que as dificuldades impostas às universidades duram há mais de 40 anos. Além da destruição de casas e famílias, também espaços de memória e pensamento acabam em ruínas, incluindo bibliotecas públicas e outros locais culturais.


O ministro palestiniano da Educação, Amjad Barham, acusou Israel de perpetrar uma destruição sistemática de escolas e universidades, indicando que 293 das 307 escolas no enclave tinham sido destruídas. “Com isto, a ocupação quer destruir a esperança dentro dos nossos filhos e filhas”, afirmava.

Em Abril do ano passado, um grupo de peritos das Nações Unidas dizia estar preocupado com o educídio em Gaza – a destruição do sistema educativo através da eliminação de infra-estruturas de ensino ou da morte de professores, estudantes e técnicos. À data, as Nações Unidas davam conta de que teriam sido mortos milhares de estudantes, assim como 261 professores e 95 professores universitários.

“É a única coisa que a faz não pensar na morte”

Muitas das escolas e universidade em Gaza, incluindo as poucas que não foram destruídas, servem agora de abrigo para pessoas desalojadas. Saja Adwan, de 19 anos, é uma delas: está a viver numa escola com a sua família de nove pessoas. Saja era uma estudante do quadro de honra no Instituto Al-Azhar, que foi bombardeado. “Todas as minhas memórias estavam lá – as minhas ambições, os meus objectivos. Estava a alcançar um sonho”, diz a estudante, que agora vai escrevendo nos poucos papéis que lhe resta, relata a Al-Jazeera. “Era lá que estavam os meus estudos, a minha vida, o meu futuro.”

A estudante Maha Ali queria tornar-se jornalista para fazer reportagens do que está a acontecer em Gaza – mas os seus sonhos caíram por terra. “Dizemos há muito tempo que queremos viver, que queremos educar-nos, que queremos viajar. Agora dizemos que queremos comer”, afirmava em Agosto à Al-Jazeera. Numa altura de fome em Gaza, Maha Ali está a viver nas ruínas da Universidade Islâmica, a primeira a ser atacada na primeira semana de guerra. Ali acredita que o seu direito à educação lhe foi roubado pelos ataques de Israel.

Os exames finais do ensino secundário em Gaza foram cancelados em 2024, mas não este ano: há 27 mil estudantes registados para as provas de Setembro de 2025, feitas online, segundo o Le Monde. Estes exames (chamados tawjihi) permitem terminar o secundário e servem de porta de entrada para o ensino superior. O Le Monde refere que 11 mil estudantes não fizeram os exames do secundário – ou porque tinham sido mortos ou feridos, ou porque não tinham forma de acompanhar a matéria dada online.




A palestiniana deslocada Mervat Al-Bassiouny, cuja perna foi amputada devido a um ataque israelita, é uma das pessoas refugiada num edifício da Universidade Islâmica de Gaza, onde se formou
REUTERS/Mahmoud Issa

Os problemas técnicos são outro problema: muitos estudantes têm tido dificuldades em fazer estes exames por causa da ligação à Internet instável e por haver interrupções constantes. “Houve uma revolta generalizada entre os alunos e os pais porque o formulário do exame não estava a abrir para muitos. Os que conseguiam aceder não conseguiam submeter as respostas. Alguns esperaram horas e o exame acabou por ser cancelado ou adiado”, conta Husam, de 42 anos, pai de uma aluna de 19 anos chamada Layan.

Mesmo nos dias de bombardeamentos mais intensos, esperava-se que os estudantes fizessem os exames, conta ao Haaretz. Apesar das dificuldades, o pai de Layan acredita que o estudo tem sido uma salvação: “É a única coisa que a faz não pensar na morte.”

Mais de meio milhão sem aulas

O ministério da Educação palestiniano e as Nações Unidas estimam que cerca de 660 mil alunos estejam sem aulas há quase três anos. O Le Monde refere que a plataforma de aprendizagem online Wise School está disponível para todos os alunos, mas só uma pequena fracção das crianças e adolescentes de Gaza a usa.

Há ainda 68 mil crianças que têm acesso a espaços de aprendizagem temporários, que também oferecem apoio psicológico. Um exemplo são as escolas improvisadas em tendas, com poucas mesas e cadeiras; muitos alunos sentam-se no chão com areia, apoiando os livros e cadernos em cima do joelho.

As aulas são dadas por voluntários. É o caso de Zein Al-Shaar, uma professora de Matemática de 25 anos que está a dar aulas do 1.º ao 10.º ano numa escola improvisada no campo de Al-Mawasi. “Muitos conceitos não foram aprendidos. As cabeças das crianças estão consumidas pela sobrevivência”, explica ao Le Monde. A fome não ajuda na concentração: os desmaios de crianças tornaram-se um acontecimento diário, escreve o jornal francês. A perda da família e amigos também deixa cicatrizes nestas crianças: “Estava [na escola] com uma menina aterrorizada que estava constantemente a chorar. Depois descobri que toda a sua família tinha sido morta, à excepção do avô”, conta a assistente social Maha Hamed.


Estima-se que tenham sido mortos mais de 61 mil palestinianos desde Outubro de 2023, segundo as autoridades de saúde em Gaza, gerido pelo Hamas. Mais de 15 mil eram crianças, indicam os dados recolhidos pela Unicef, que alerta que o número de mortes pode ser mais elevado. Segundo as autoridades de Gaza, são quase 19 mil as crianças que morreram desde Outubro de 2023, por causa dos ataques, da fome ou da falta de acesso a serviços de saúde.