Há qualquer coisa de errado com a distribuição portuguesa (na verdade, há muita coisa errada…) quando um cineasta como o norte-americano Ira Sachs deixa de ter os seus filmes estreados entre nós. É o autor de óptimos filmes como Love Is Strange — O Amor é uma Coisa Estranha (2014), Homenzinhos (2016) ou Frankie (2019), que rodou em Portugal com Isabelle Huppert, Marisa Tomei e Brendan Gleeson. Mas nem a presença de Franz Rogowski, Ben Whishaw e Adèle Exarchopoulos no ménage à trois bissexual Passages (2023) garantiu a estreia desta obra em Portugal, fora de uma solitária passagem no Queer Lisboa desse ano. E o mesmo parece destinado a acontecer com Peter Hujar’s Day, a sua mais recente longa-metragem, que passa esta sexta-feira (Cinema São Jorge, 19h15), mais uma vez no Queer Lisboa.

Peter Hujar’s Day — até ver sem exibição comercial assegurada no nosso país — reencena, quase em tempo real, uma entrevista que o fotógrafo Peter Hujar (1934-1987) deu à escritora e crítica Linda Rosenkrantz em 1974. Esta pedira a amigos seus do mundo da arte para tomarem nota de tudo o que lhes acontecera ao longo de um dia, para depois conversarem com vista a um livro que acabou por nunca ser terminado. Em 2021, contudo, publicou o capítulo gravado com Hujar, fotógrafo muito mais reconhecido depois da sua morte do que em vida, e aclamado particularmente pelo seu trabalho de retratista.

Ao adaptar a entrevista ao cinema a partir do livro publicado em 2021, Ira Sachs faz ele próprio um exercício de “retratista”, num notável trabalho de minimalismo formal e narrativo, uma “miniatura” de 75 minutos para um cenário e dois actores. Mas que actores: Rebecca Hall como Linda Rosenkrantz e Ben Whishaw como Peter Hujar.

Podia ter sido uma peça teatral, mas não é teatro filmado. Ao colocar esta história de um dia normal de um fotógrafo nova-iorquino a decorrer durante um dia normal nova-iorquino, começando com a luz da manhã e terminando já a noite caída, Sachs replica discretamente o próprio dispositivo da conversa. Ao variar as divisões onde Peter e Linda conversam, da sala ao quarto ao telhado, sublinha a própria variação dos eventos do “dia de Peter Hujar” que lhe dá título. E estes passam por uma sessão fotográfica com Allen Ginsberg que lhe dá água pela barba, visitas de amigos, conversas telefónicas, e um jantar de take-away chinês, num retrato por interposta pessoa do meio artístico nova-iorquino desse ano de 1974.


A dada altura, Linda diz a Peter que ele mente com uma facilidade extraordinária, levando os espectadores a perguntarem-se como é que a sua memória é tão precisa. Por outro lado, Hujar era fotógrafo, observador, portanto não é improvável que tivesse presentes esses pormenores. Mas a entrevista existiu, Hujar disse realmente estas coisas (o livro é, afinal, uma transcrição da fita gravada) e ao encenar esta conversa Sachs procura transportar-nos imediatamente para um período fervilhante de Nova Iorque.

E não poderia ter melhor guia do que Ben Whishaw, um dos grandes actores shakespearianos da sua geração, que encontra aqui um daqueles papéis em ouro que não aparecem muitas vezes numa carreira. Numa modulação quase perfeita de tom, presença, magnetismo, Whishaw enverga o fotógrafo como uma segunda pele, com uma impressionante entrega, sempre no exacto ponto em que precisa de estar para fazer passar o misto de resguardo e solidão do protagonista. Rebecca Hall pode ter menos que fazer, mas a segurança com que sustenta a palavra de Whishaw — e este é um filme de e sobre palavras, apesar de a sua personagem principal ser um fotógrafo — é necessária para o filme e essencial para libertar o seu comparsa para os altos voos que dá.


De certo modo, faz sentido que o realizador tenha ido buscar dois actores de formação teatral para o que é um dueto de elevada precisão e exigência. Perante Ben Whishaw e Rebecca Hall, não há muito mais que se possa fazer a não ser deixá-los impregnar a película. Ira Sachs fá-lo. Peter Hujar’s Day pode ser uma miniatura, mas miniaturas destas não há por aí aos trambolhões. A sessão do Queer é, por isso, a não perder.