A “técnica do inseto estéril” tem sido há décadas uma das principais apostas para controlar pragas e doenças das quais os insetos são vetores. Ela já foi usada com sucesso para erradicar o berne dos Estados Unidos a partir de projetos pioneiros na Flórida (1957) e no Texas (1962) — até casos reaparecerem no gado este ano. Uma de suas vantagens é a falta de necessidade de aplicar inseticidas, potencialmente tóxicos.

Agora, uma técnica similar, mas que envolve a substituição da população de insetos vetores de doenças, está sendo empregada no Brasil para o controle dos vírus da dengue, chikungunya, zika e febre amarela. Paradoxalmente, a técnica envolve produzir mais mosquitos, em vez de matá-los.

O potencial é enorme. Pesquisas estimam que só a dengue e a febre amarela causam juntas mais de 50 mil mortes por ano no mundo.

Wolbito do Brasil: usando o parasita do parasita

Em julho deste ano, foi inaugurada no Parque Tecnológico da Saúde do Paraná a maior fábrica do mundo para produção do mosquito da dengue, com capacidade estimada de gerar 100 milhões de ovos do Aedes aegypti por semana.

A fábrica, que resulta de uma parceria entre o Instituto de Biologia Molecular do Paraná (IBMP) e o World Mosquito Program (WMP), tem no nome uma pista para entender a técnica: “Wolbito do Brasil”. 

“Wolbito” é uma junção entre o nome da bactéria Wolbachia e a palavra “mosquito”. A bactéria, que infecta mais da metade das espécies de insetos do mundo, só consegue viver dentro das células de seus hospedeiros artrópodes, preferencialmente dentro de óvulos.

Uma das consequências desse estilo de vida da bactéria é que algumas linhagens de Wolbachia são capazes de transformar insetos machos em fêmeas, induzir fêmeas a terem filhotes sem a necessidade de sexo e, o que é mais relevante para a técnica, até impedir a reprodução do hospedeiro.

É o caso do Aedes. A linhagem de Wolbachia que a fábrica introduz nos mosquitos é conhecida como “wMel” (que ocorre na natureza). As bactérias dessa estirpe impedem que fêmeas não infectadas por Wolbachia tenham filhotes após copular com machos infectados.

A Wolbachia tem outra característica crucial: ela atua como um antivírus natural dentro do mosquito, atacando os vírus e diminuindo sua capacidade de transmissão entre mosquitos e de mosquitos para humanos.

Em suma, a técnica do Wolbito consiste em usar o parasita bacteriano de um parasita de humanos, o mosquito, para diminuir na natureza a presença de outros parasitas que afetam humanos, os vírus da dengue e outras doenças.

Técnica tem entregado bons resultados em outros países

A reportagem fez uma triagem aprofundada de todos os estudos científicos publicados a respeito da técnica do Wolbito. Entre 416 artigos publicados, foram escolhidos os 50 mais relevantes.

O amplo consenso, de 78% das publicações, é que a técnica funciona. Múltiplos experimentos laboratoriais e em campo confirmam que o Aedes aegypti infectado com Wolbachia apresenta uma redução dramática em sua competência para transmitir os vírus da dengue, zika, chikungunya, febre amarela e mayaro (uma virose similar à dengue encontrada na Amazônia).

No estudo com o método mais rigoroso, publicado em 2021 no New England Journal of Medicine (NEJM, uma revista científica de prestígio), a incidência da dengue caiu em 77% nas populações das áreas com liberação dos mosquitos tratados. As hospitalizações por dengue caíram em 86%. Esse resultado foi observado na cidade de Yogyakarta, na Indonésia.

O estudo sobre a introdução da técnica Wolbito em áreas da cidade, publicado em 2020, foi liderado por Scott O’Neil, da Universidade Monash, na Austrália, um dos maiores especialistas em Wolbachia do mundo desde a década de 1990. Os autores observaram, a propósito, que não é necessário liberar mosquitos adultos em nuvens que possam incomodar as comunidades pelo aumento de picadas. Também é possível liberar os ovos, que eclodirão de forma mais gradual.

São conhecidos detalhes de algumas das armas usadas pela Wolbachia contra os vírus. Ela pode exacerbar a resposta imunológica dos mosquitos, por exemplo, e competir pelos recursos dentro das células. Além da linhagem “wMel”, outras são usadas. As linhagens variam quanto à eficiência no bloqueio dos vírus, sensibilidade à temperatura e efeitos reprodutivos no hospedeiro.

A técnica parece estável. Segundo quatro estudos, os efeitos da bactéria ficam estáveis por até uma década. Os testes foram conduzidos em diferentes condições ambientais na Austrália, Brasil, Indonésia e Malásia. Como se trata de seres vivos com curto tempo de geração (tanto os mosquitos quanto as bactérias), a interação também pode mudar rapidamente.

Boatos sobre a técnica e respostas

Como a técnica do Wolbito é nova, há incompreensão de parte da população e mitos que circulam a respeito.

Boato: os cientistas estariam modificando geneticamente os mosquitos ou a bactéria de forma perigosa. 

Resposta: não, a engenharia genética não é usada. Tudo o que fábricas como a Wolbito do Brasil fazem, além de criadouro de mosquitos, é infectá-los com uma linhagem de Wolbachia que, como informado, já existia na natureza. A mosca das frutas é usada como um berçário da bactéria, e uma microsseringa é usada para extraí-la e colocá-la em embriões dos mosquitos.

No máximo, há estudos em condições laboratoriais que usam técnicas de edição de DNA para estudar quais genes da bactéria e do mosquito influenciam o impedimento à reprodução observado, conhecido como “incompatibilidade citoplasmática”. Isso não é feito nos experimentos que liberam mosquitos no ambiente. 

Boato: segundo a agência Associated Press, circulou em 2023 um rumor de que casos de malária na Flórida e no Texas foram causados pela liberação de mosquitos nesses estados americanos em programas de pesquisa financiados pela fundação de Bill Gates. 

Resposta: o boato mistura várias coisas. É verdade que a empresa Oxitec liberou mosquitos tratados na Flórida, sem dinheiro de Gates, mas eles eram da espécie Aedes aegypti. O mosquito que transmite a malária, que é causada por um protozoário, é totalmente diferente: o Anopheles. Além disso, os mosquitos liberados pela Oxitec eram machos, e somente fêmeas picam humanos. Os casos de malária, inclusive, foram em uma região diferente da Flórida. Eles não eram novidade, aliás. Casos isolados e pouco numerosos de malária nos Estados Unidos são recorrentes.

Boato: a Wolbachia usada em técnicas como o Wolbito ameaça a saúde de cães e gatos.

Resposta: existe um microverme chamado dirofilária que causa doença em cães e gatos por se instalar no coração ou nas artérias pulmonares dos pets. O verme não consegue viver sem Wolbachia. Isso é conveniente para os veterinários, pois o verme morre pela administração de antibióticos que matem a bactéria. Contudo, a linhagem de Wolbachia contida nesse parasita, que participa da doença nos animais por causar inflamação, é um parente distante das linhagens encontradas nos mosquitos. Vermes e mosquitos são hospedeiros diferentes, então essas linhagens da bactéria se modificaram para se adaptar a essas diferenças. Os cientistas estimam que as duas estirpes de Wolbachia se separaram há mais de 200 milhões de anos. Portanto, a semelhança é pequena.

Não há qualquer risco aos animais de estimação apresentado pelas bactérias Wolbachia que moram dentro dos óvulos dos mosquitos. Se seu pet comer um desses mosquitos, a bactéria morrerá em seu estômago junto com o inseto. Ainda que fosse a mesma linhagem de Wolbachia (uma impossibilidade biológica), o que causa a doença nos cães e gatos é o verme, não essa bactéria.

Nas técnicas de aproveitamento dessa bactéria, um dos parasitas mais comuns e antigos dos insetos, os ameaçados são os vírus da dengue e outras doenças transmitidas por mosquitos, não humanos ou seus animais de estimação. Pelo contrário, muitas vidas serão salvas.