Em 2023, o investigador palestiniano Hazem Madhoun contribuiu com a recolha de testemunhos para o caso da África do Sul que levou Israel ao Tribunal Internacional de Justiça por genocídio. É difícil encontrar as palavras para descrever o que viu desde então. Um testemunho na primeira pessoa construído a partir de uma entrevista.
“No primeiro mês do genocídio, as paredes da casa onde nos refugiámos caíram sobre mim. Fiquei encurralado entre edifícios colapsados, junto de dezenas de pessoas presas debaixo dos escombros. Resgataram-me depois de ter estado 40 minutos inconsciente. Não sei como sobrevivi.
Passei duas semanas no hospital Nasser. Vi crianças cortadas aos pedaços. Pessoas a correr por todo o lado.
Todos os bairros têm centenas de mortos. Famílias inteiras desapareceram. O exército da ocupação israelita destruiu todas as casas, todos os prédios, todos os edifícios — muitos com dezenas de pessoas lá dentro. Cortou água, luz e comida. Forçou a deslocação de quase toda a gente. Tudo isso são indicadores das intenções genocidas do estado de Israel.
Eu e a minha família deixámos a Cidade de Gaza, a nossa casa e a nossa vida à beira da praia, pelo Sul — não por “estarmos seguros”, uma vez que o objectivo das ordens de evacuação nunca foi proteger-nos, mas sim deslocar-nos. Encurralam-nos numa área pequena, onde as escolas e os abrigos estão cheios, que a seguir também é bombardeada. Não adianta para onde vamos, não há lugares nem dias seguros.
Em Outubro de 2023, nessa viagem do norte para o sul, era impossível compreender o que estava a acontecer. Milhares de pessoas com as suas malas, tantas a pé por falta de transporte e combustível, a desmaiar de exaustão e de calor.
É difícil descrever o que vivemos.
Ver pessoas morrer a poucos metros de distância.
Ver Israel mandar panfletos para a evacuação de um bairro e bombardeá-lo cinco minutos depois.
Viver com 19 pessoas num apartamento com um quarto, sem luz, sem água, num estado de pânico.
Viver numa tenda, noutra e noutra.
Ver seis mil pessoas viverem numa escola com capacidade para 500. Centenas numa só sala. Onde não há água. Onde se esperam horas para ir à casa de banho. Onde Israel também bombardeia indiscriminadamente.
Sei que há quase duas décadas que vivíamos 2,3 milhões de pessoas numa faixa de 365 quilómetros quadrados de terra, cercada e bloqueada, mas nada nos preparou para esta guerra. É uma guerra contra a nossa existência.
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Em 2024, Israel voltou a usar a comida como arma. Desde então, mata à fome. Hoje, no melhor dos cenários, tenho uma pequena refeição por dia. Há crianças tão mal nutridas que perderam a visão. 1500 pessoas já ficaram cegas, disse o director de um hospital de cirurgia oftalmológica há dias. Mesmo que a comida chegasse agora, não seria suficiente para dois milhões de pessoas esfomeadas, esganados como estamos.
As doenças estão por todo o lado. Muita gente tem infecções nos rins, estômago, intestinos. Israel destruiu todas as estações de dessalinização de água que havia.
E não parará de bombardear até acabar com tudo.
Cheira sempre a fumo, balas e carne ardida…
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No cessar-fogo do início de 2025, fiz dez quilómetros a pé desde Khan Yunis. Foi chocante ver o Norte de Gaza. Ver a minha cidade completamente destruída. Viver dentro de uma casa bombardeada, sem água. Tentar dezenas de vezes ter autorização para sair. E, quando Israel retomou o genocídio, ver tudo tornar-se muito mais brutal.
Não há qualquer regra ou lei internacional que se aplique desde então. O poder militar usado não tem comparação com nada que tenha visto antes. Mata dezenas de pessoas todos os dias. Recorre a todas as ferramentas de extermínio. Há corpos a voar. Zero ajuda humanitária. Fome generalizada.
Na semana passada, tentei ir buscar um saco de farinha a um centro humanitário a três quilómetros de distância. Estava escuro, era madrugada quando saí. Na fila, à espera, dezenas de pessoas estavam deitadas no chão para evitar as balas israelitas. Mal se via, mas ouviam-se os disparos. Estávamos ali à espera do nosso destino.
Já mais de mil pessoas foram mortas assim, à espera de comida. Na última terça-feira, quatro amigos desapareceram depois de terem ido para uma dessas filas.
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Eu não consigo encontrar as palavras para comunicar as experiências que vivi. A gravidade retratada nos media não se compara com a realidade. Não podem imaginar o que são bombas a cair aos nossos pés. O plano é matar, matar. Expulsar-nos a todos.
Mas, apesar disso, mantemo-nos agarrados a Gaza, com a esperança de podermos viver aqui em paz.
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Preciso só de voltar atrás no tempo.
Em Novembro de 2023, estava a tentar que a minha mãe, doente com cancro, saísse de Gaza para se tratar. Consegui um relatório médico e fui com ela para a fronteira de Rafah. Esperávamos há várias horas.
Enquanto isso, Israel bombardeava a casa onde estava a minha esposa, a minha filha de três meses, os meus sobrinhos e todos os nossos vizinhos em Khan Yunis. Quando consegui lá chegar, não fui a tempo. Disseram-me que elas estavam em pedaços.
Fui ao Hospital Europeu, como me mandaram, ver se os encontrava.
Cheguei de madrugada, a pé, sentindo-me louco. Eu, ali, num hospital sobrelotado e assoberbado, à procura de pedaços da minha mulher e do meu bebé.
(A chamada cai. Volta passados cinco minutos.)
Sim, estava à procura dos seus corpos. No hospital disseram-me que havia pedaços delas e de 70 outras pessoas. Que a situação era tão complicada que não conseguiam trazê-los. Desmaiei.
Os meus irmãos insistiram para que saísse de Gaza com a minha mãe, já que agora estava sozinho. Não tenho ninguém.
Mas decidi não sair com ela. Tenho direito a estar em Gaza, a ficar em Gaza. A nossa existência neste lugar é a melhor demonstração de que existe resistência à ideologia colonial de Israel. Escrevemos, pintamos, lutamos, recusamos sair. Ainda que qualquer forma de resistência não se compare com o poderio militar de Israel, ou com as armas dos Estados Unidos, resistir à colonização e a uma campanha genocida é o nosso direito. Todas as formas de lhe resistir são legítimas.
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Eu costumava pôr algodão nas orelhas da Rour, a minha filha, para que ela conseguisse dormir durante os bombardeamentos. Mas ela chorava o tempo todo.
Todas as pessoas que conheci no meu trabalho como investigador também perderam familiares. Os médicos, particularmente, são um grande alvo.
Um dia, fui entrevistar um médico e, dois minutos depois de me despedir, o lugar onde ele estava foi bombardeado. O testemunho que me deu foi o último.
Esta é a vida das pessoas de Gaza durante o genocídio.
Fome, bombardeamentos, escuridão, expulsão, doenças. Água poluída e esgotos nas ruas.
Israel não está a atacar nenhuma facção política, está a atacar todos os palestinianos que aqui vivem.
Há dias, um sniper disparou para o quarto onde eu estava. Não sei como estou aqui hoje.
Ao longo destes 660 dias, fui deslocado mais de dez vezes. Perdi tudo.
Oitenta por cento deste lugar é pó.
As pessoas estão famintas, frágeis, tontas com a falta de calorias. Não há campos de cultivo, nem farinha, nem água. Não há absolutamente nada. E o mundo assiste em silêncio. Ninguém quer saber. Estamos abandonados.”
Testemunho do investigador palestiniano Hazem Madhoun, natural da Cidade de Gaza, actualmente refugiado em Khan Yunis. Encontro e tradução do árabe produzidos por Badil Resource Center for Palestinian Residency and Refugee Rights. Testemunho editado pela jornalista Margarida David Cardoso.