A intensificação da ofensiva militar israelita à Cidade de Gaza da última semana tornou-se, ainda mais, uma ameaça para a população palestiniana, alertaram pelo menos 51 organizações humanitárias.
Os Médicos do Mundo descreveram estes ataques como “uma sentença de morte” para o povo palestiniano.
Perante as ordens de Israel para as pessoas abandonarem a Cidade de Gaza e a iminência de destruição total dos edifícios, arqueólogos ajudados por equipas humanitárias da Premiere Urgence Internationale – PUI – (organização humanitária e de proteção de património cultural de Gaza desde 2009), em colaboração com o Patriarcado Latino de Jerusalém, acorreram a um depósito de 80 metros quadrados para resgatar um dos acervos arqueológicos mais ricos da Faixa de Gaza.
Mais de 25 anos de escavações
O acervo arqueológico compreende dezenas de milhares de artefatos de importantes sítios cristãos em território palestiniano, incluindo a Igreja de Mukheitim, a Igreja de Al-Bureijh, a necrópole romana de Ard-Moarbin e Anthedon (Lista Provisória da UNESCO).
Entre os materiais arqueológicos estão cerâmicas, mosaicos, moedas, gesso pintado, inscrições, restos humanos e animais.
“Este espólio representa uma componente essencial do património palestiniano e é vital para a compreensão da história cristã primitiva e antiga do Oriente Médio. A sua destruição representaria uma perda irreparável para o património global”, de acordo com a French Biblical and Archaeological School of Jerusalem (EBAF), que defende não ser apenas a história de Gaza que está em jogo, mas a do mundo.
Os trabalhadores humanitários não tiveram tempo suficiente para traçar um plano adequado no transporte de artefatos tão sensíveis, disseram os arqueólogos | Premiere Urgence Internationale
Apesar de o edifício que albergava a coleção de artefactos beneficiar de proteção da ONU, além de ser administrado pela EBAF de Jerusalém, o exército israelita deixou claro aos arqueólogos que o armazém não seria poupado, enfatizando que o Hamas usa os civis de Gaza como escudos humanos, assim como casas, hospitais, escolas, mesquitas e mesmo áreas culturais.
De acordo com a publicação The Times of Israel, os militares acrescentaram que o prédio abrigava instalações vigilância do Hamas.
Resgate improvisado e em contrarrelógio
O arqueólogo Fadel al-Otol, com outros colegas, organizou um grupo de trabalho para retirar os materiais arqueológicos do edifício al-Kawthar.
“Nunca passou pela minha cabeça que sítios arqueológicos, museus e armazéns seriam destruídos um dia. Esses objetos são o fruto do nosso trabalho em Gaza nos últimos 30 anos. O meu coração está partido”, sublinhou Otol em entrevista ao L’Orient Today e à BBC News.
“Este resgate simboliza o nosso compromisso em proteger não apenas a vida, mas também a memória e o património de um povo. Desde 2017,os nossos programas têm como objetivo preservar esse património histórico, ao mesmo tempo que oferecemos treino e meios de subsistência para os jovens palestinianos”, explicou a equipa Première Urgence Internationale, que geriu a segurança do local, negociando mais tempo com as forças de Telavive para procurar parceiros capazes de transferir o acervo.
Após nove horas de negociação com os militares israelitas as equipas de ajuda humanitárias também enfrentaram a dificuldade para encontrar camiões numa Faixa de Gaza devastada, onde o combustível é quase inexistente.
“Cinco minutos antes de eu aceitar que todo este património seria obliterado na nossa frente, um parceiro ofereceu-nos transporte”, relatou Kevin Charbel, coordenador de campo de emergência da Premiére Urgence Internationalel. A PUI trabalhou com o Patriarcado Latino de Jerusalém para conseguir transferir os artefatos para um local mais seguro na cidade de Gaza, cujo o sítio não foi divulgado por razões de segurança.
Com um ataque aéreo israelita a aproximar-se, os trabalhadores humanitários realizaram a missão de resgate contra o tempo. Os arqueólogos tiveram seis horas para “embalarem milhares de peças e empilharem cuidadosamente caixas de papelão em veículos de caixa aberta”, descreveu a PUI.
Olivier Poquillon, diretor da EBAF, relatou que a mobilização foi feita “com quase nenhum ator internacional dos que restam no território, nenhuma infraestrutura, tendo que improvisar transporte, mão de obra e logística” | Premiere Urgence Internationale
Os militares israelitas não permitem o uso de contentores fechados, expondo os artefatos a perigos adicionais. Alguns materiais arqueológicos partiram-se no transporte e perto de 30 por cento tiveram que ser deixados para trás, sendo apenas fotografados e catalogados.
Israel destruiu o prédio três dias depois.
Porquê salvar a riqueza arqueológica de Gaza?
Gaza é um importante centro cultural e histórico por ser palco das rotas comerciais antigas entre o Egito e o Levante e dar chão a milhares de sítios arqueológicos associados a diferentes povos milenares, como egípcios, cananeus, israelitas, persas, romanos e bizantinos.
Alguns templos, mosteiros, palácios e mesquitas datam de 6 mil anos, sendo que muitos dos artefatos encontrados estão indicados pela UNESCO como património a ser preservado.
A UNESCO também avançou que Israel já danificou, pelo menos, 110 locais culturais em toda a Faixa de Gaza, incluindo 13 locais religiosos, 77 edifícios de interesse histórico ou artístico, um museu e sete sítios arqueológicos, desde o início da guerra em outubro de 2023.
Enquanto a população enfrenta uma crise humanitária e precisa de negociar água, alimentos e medicamentos para salvar vidas, Charbel refletiu sobre a necessidade de salvar também os artefatos arqueológicos, salientando que o resgate dos artefatos do edifício al-Kawthar acabou por ser uma conquista perante um cenário de devastação de sítios históricos em Gaza.
“Nós aceitámos fazer este resgate, porque o espólio é tão valioso, estes objetos únicos milenares representam uma tal importância, tanto para a história mundial como também para a história de Palestina”.
“Destruir as primeiras provas da história cristã na Palestina iria apagar essa etapa da humanidade para sempre”, exaltou.