Portugal tem agora mais uma Reserva da Biosfera da UNESCO: a Arrábida, uma cordilheira que se estende desde o morro de Palmela até ao cabo Espichel, ocupando 200 quilómetros quadrados em três municípios da região de Setúbal. Esta distinção internacional, anunciada este sábado na China, vem coroar uma área onde a serra está em constante diálogo com o oceano, permitindo a existência de paisagens, espécies e práticas socioculturais únicas.
“É algo muito merecido”, diz ao Azul o ambientalista Francisco Ferreira, um apaixonado por “esta serra proeminente, pela sua presença junto ao mar”. Arrábida junta-se assim a outras 12 Reservas da Biosfera da UNESCO em Portugal, que incluem as Berlengas e as ilhas Graciosa, do Corvo e das Flores.
“Desde a sua criação, em 1971, o nosso Programa sobre a Humanidade e a Biosfera construiu uma verdadeira rede mundial, com mais de 750 Reservas da Biosfera em 136 países”, afirmou Audrey Azoulay, directora-geral da UNESCO, no arranque do quinto Congresso Mundial das Reservas da Biosfera, que decorreu ao longo desta semana na cidade chinesa de Hangzhou, citada num comunicado.
António de Sousa Abreu, director da Divisão de Ciências Ecológicas e da Terra da UNESCO, afirma ao Azul que esta conquista é sempre “motivo de animação e auto-estima”, uma vez que a marca UNESCO “é muito respeitada”, mas que constitui sobretudo “uma plataforma de diálogo e convergência que pode ajudar a transferir conhecimento e mostrar que a conservação pode, e deve, ser um pilar do desenvolvimento sustentável”. “Uma reserva da biosfera não é uma varinha mágica, mas pode, através do diálogo, fomentar soluções – este é o seu maior trunfo”, afirma Sousa Abreu, numa chamada telefónica a partir da China.
As Reservas da Biosfera da UNESCO são territórios que apresentam uma relação harmónica entre os seres humanos e a natureza, conjugando a conservação da biodiversidade com o desenvolvimento sustentável e investigação científica. Estas áreas designadas pela UNESCO têm como objectivo proteger ecossistemas singulares ou representativos, promovendo práticas económicas e turísticas sustentáveis. A Arrábida, por exemplo, distingue-se na produção de queijos, vinhos e mel, bem como nas artes de pesca, pecuária e agricultura. A UNESCO descreve-a como “uma jóia costeira”.
“A conjugação das características climáticas, geográficas e orográficas justifica a presença de comunidades vegetais únicas, a nível mundial, ricas em história evolutiva, que resultam numa paisagem vegetal excepcional. Esta vegetação, apesar de algumas semelhanças com outras serras calcárias, apresenta aspectos exclusivos: o carrascal arbóreo – relíquia e único na Europa – e o tojal”, lê-se no dossier de candidatura da Associação de Municípios da Região de Setúbal (AMRS).
Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, com o Convento da Arrábida ao fundo
Nuno Ferreira Santos
Riquezas naturais únicas
A nova Reserva da Biosfera “alberga mais de 1400 espécies de plantas – representando 40% da flora de Portugal –, incluindo 70 espécies raras e endémicas”, acrescenta uma nota da UNESCO. Acolhe também uma fauna diversificada, com 200 espécies de vertebrados e mais de 2000 espécies marinhas, incluindo golfinhos-nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus), robalos (Dicentrarchus labrax) e salmonetes (Mullus barbatus).
Há espécies vegetais que só existem na zona da Arrábida. É o caso da corriola-do-espichel (Convolvulus fernandesii), um arbusto com flores brancas que ocorre em afloramentos calcários que, segundo o Instituto para a Conservação da Natureza e da Floresta (ICNF), é um caso “notável” de endemismo arrabidense.
No que toca à fauna, o dossier de candidatura destaca invertebrados como o gorgulho-esmeralda-rosado (Cneorhinus serranoi) e o caracol Candidula setubalensis, que ocorrem unicamente na serra da Arrábida.
A zona acolhe borboletas como a fritilária-dos-lameiros (Euphydryas aurinia) e a espécie nocturna Euplagia quadripunctaria, bem como abrigos importantes para várias espécies de morcegos, alguns deles relevantes para a criação e hibernação do morcego-de-peluche (Miniopterus schreibersii).
“As falésias costeiras dramáticas e os desfiladeiros subaquáticos realçam a sua singularidade na Península Ibérica”, refere uma nota da UNESCO. A Arrábida possui um parque marinho com 52 quilómetros quadrados, ladeado por essas formações geológicas exuberantes, e um património histórico e cultural que inclui dois castelos, um em Palmela e outro em Sesimbra, e um convento homónimo.
Esta riqueza natural e paisagística já tocou diferentes escritores portugueses, incluindo Sebastião da Gama (1924-1952), que no livro Serra-Mãe alude ao “casamento do cheiro a maresia / com o perfume agreste do alecrim” num poema homónimo, e Maria Gabriela Llansol (1931-2008), cuja obra Da Sebe ao Ser, por exemplo, faz referência ao “litoral de maresia”, com a voz de uma criança de cinco anos a convidar para “ver a nostalgia do mar”.
Fábrica da cimenteira Secil em Outão
A preparação da candidatura da Arrábida a Reserva da Biosfera remonta a 2016, quando a AMRS assinou um protocolo com o ICNF e os municípios de Palmela, Sesimbra e Setúbal. Agora, quase uma década depois, a proposta recebeu sinal verde da UNESCO, juntamente com outras 25 enviadas por 20 países. Entre elas estão, por exemplo, as novas Reservas da Biosfera da Ilha de Bioko (Guiné Equatorial), da Ilha de São Tomé (São Tomé e Príncipe) e da Quiçama (Angola).
A cimenteira de Outão
A pretensão inicial, recorda Francisco Ferreira, era ter a Arrábida como Património da Humanidade, mas a proposta acabou por ser retirada em 2014, após relatórios técnicos desfavoráveis. “A UNESCO apontou então uma série de factores que fragilizavam a candidatura, a começar pela presença da cimenteira Secil e das pedreiras na envolvente da serra da Arrábida”, refere o presidente da associação Zero.
Além da presença da fábrica da Secil em Outão, foram então referidas nos relatórios deficiências na gestão e ordenamento do território, bem como características naturais e culturais que, apesar de valiosas, não eram “suficientemente únicas”. Já esta candidatura à Reserva da Biosfera, avalia Francisco Ferreira, “tinha todas as possibilidades de sucesso”.
Para o biólogo Jorge Palmeirim, que integra a direcção da Liga da Protecção da Natureza, a classificação como Reserva da Biosfera “dá mais responsabilidade ao Governo” na forma como gere a Arrábida daqui para a frente. O responsável recorda que “o Governo teve uma oportunidade excelente de tirar a cimenteira da serra”, há um ano, aquando da renovação da licença ambiental, “mas com o Simplex ambiental nada foi feito”.
Jorge Palmeirim considera “ofensas paisagísticas” tanto a fábrica do Outão como as pedreiras Vale de Mós A e B, de onde a Secil extrai marga e calcário na propriedade Quinta de Vale de Rasca. “Isto é a mesma coisa que ter uma cimenteira à porta do Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa”, compara o biólogo.
Numa carta aberta divulgada em 2023, a LPN pedia à cimenteira Secil para encerrar definitivamente a actividade na região, em vez de tentar aumentar a área de exploração de calcário no Parque Natural da Arrábida – estatuto de protecção que já conta com quase 50 anos.
Na missiva, apoiada por várias associações ambientalistas, a LPN recomendava não só uma solução justa para os trabalhadores daquelas unidades da Secil, mas também a definição de um plano de reabilitação das áreas esventradas para a extracção de minerais.
“A fábrica está a comer a serra, ela alimenta-se dela. E isto tem um impacto na Arrábida que é, de algum modo, irreversível”, lamenta Jorge Palmeirim, numa chamada telefónica com o Azul.
Contactada pelo Azul, a Secil refere, numa resposta enviada por Nuno Silva, director de comunicação institucional, que a empresa “está há cem anos na Arrábida, vai continuar a estar nas próximas décadas e esta inclusão na Reserva da Biosfera e o crescente aumento do turismo regional comprovam à saciedade que essa presença em nada diminui ou prejudica o nosso fantástico ecossistema, que sempre coexistiu com a actividade humana desse território”.
A Secil recorda ainda que “contribui activamente para o estudo e conservação da serra da Arrábida através do seu Plano Ambiental de Recuperação Paisagística, do vultuoso e prolongado apoio ao Programa Biomares do Parque Marinho Luiz Saldanha e da intensa relação que mantém com universidades, o próprio Parque Natural da Arrábida e com muitos outros stakeholders locais, designadamente associações ambientalistas”.
Presença portuguesa na China
O congresso na China reuniu cerca de quatro mil participantes, contando não só com a intervenção de investigadoras portuguesas nos painéis – as professoras Fernanda Rollo, da Universidade Nova de Lisboa, e Helena Freitas, da Universidade de Coimbra –, mas também com a presença de uma delegação portuguesa.
“Integradas numa rede global que atravessa fronteiras e culturas, as Reservas da Biosfera mostram que é possível restaurar ecossistemas degradados, promover economias sustentáveis e fortalecer comunidades que assumem a salvaguarda da biodiversidade”, afirma a investigadora Helena Freitas, coordenadora do Centro de Ecologia Funcional e da Cátedra UNESCO em Biodiversidade e Conservação para o Desenvolvimento Sustentável, citada num comunicado da Universidade de Coimbra.
A comitiva nacional era composta pelo autarca de Palmela Álvaro Amaro, em representação da Comissão Executiva da Arrábida, pela secretária-geral da AMRS, Sofia Martins, e membros da Comissão Técnica da Arrábida, em representação dos municípios de Sesimbra e Setúbal e da AMRS, segundo uma nota de imprensa da associação.