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Chamam-lhe o Santo Graal da investigação sobre o alívio da dor: um fármaco comparável aos opióides mais fortes, mas sem os seus efeitos secundários potencialmente devastadores. Quando a biofísica Kaavya Krishna Kumar partiu em busca de uma nova forma de desenvolver um desses fármacos, sabia que teria de começar com uma substância cujo efeito fosse bastante forte. Por isso, dirigiu-se aos cantos recônditos do fórum online Reddit, onde tomou conhecimento de uma droga de rua ilícita com a reputação de proporcionar viagens psicotrópicas poderosas e causar muitas náuseas.
“Tem uma potência do outro mundo”, dizia a publicação de um consumidor. “Uma quantidade quase invisível de pó dá imediatamente uma sensação de euforia.” A droga chama-se FUBINACA e é um canabinóide sintético, uma molécula concebida em laboratório de modo a atingir as mesmas áreas do sistema nervoso afectadas pelo tetrahidrocanabinol, ou THC, o principal composto psicoactivo da canábis. Os químicos clandestinos produzem drogas como esta desde o início da década de 2000, quando a marijuana para fins recreativos ainda era criminalizada nos Estados Unidos e os canabinóides sintéticos eram alternativas baratas e quase legais. Na sua forma em pó, costumam ser dissolvidos com solventes e posteriormente borrifados sobre fragmentos de plantas para serem vendidos, com um piscar de olhos, como incenso. “Não é indicado para consumo humano”, costuma referir a etiqueta, contornando assim a legislação.
Comercializados sob alcunhas como spice [especiaria] ou K2, estes sintéticos fizeram disparar o alarme devido à toxicidade e riscos de contaminação. A composição química exacta e concentração podem variar de produto para produto e os efeitos secundários incluem episódios maníacos e ataques cardíacos.
SERGIY BARCHUK
No entanto, Krishna Kumar, da Faculdade de Medicina de Weill Cornell, reconheceu na FUBINACA uma ferramenta para compreender o funcionamento do sistema de gestão da dor. Depois de alguma modelação molecular, ela e uma equipa de investigadores de Stanford e da Faculdade de Medicina da Universidade de Washington descobriram uma forma inovadora de modificá-la. No início deste ano, a equipa publicou um estudo demonstrando que um fármaco derivado da FUBINACA proporcionara um alívio prolongado da dor em ratos, aparentemente sem efeitos secundários psicoactivos ou conducentes à tolerância. Tais efeitos secundários já abrandaram o progresso de outro eventual medicamento para o alívio da dor, diminuindo o entusiasmo sobre aquilo que parecia ser uma alternativa promissora aos opióides. Agora, alguns cientistas esperam que a investigação dê novo fôlego a esse trabalho e possa abrir fronteiras terapêuticas ainda maiores.
A FUBINACA nem sempre foi uma droga de rua. Foi desenvolvida pela Pfizer e patenteada em 2009, no âmbito de um esforço para criar “uma superaspirina sem efeitos secundários”, afirma Darin Jones, antigo químico da Pfizer. À semelhança do THC, os canabinóides sintéticos activam um receptor químico poderoso conhecido como CB1. Nos seres humanos e outros mamíferos, o CB1 está presente nas células nervosas do cérebro e noutras células do corpo. Sabe-se que influencia a percepção da dor, o sono, o metabolismo e a memória, sendo por isso um alvo promissor para a investigação farmacêutica. (Um segundo receptor canabinóide, o CB2, parece regular sobretudo o funcionamento das células imunitárias).
Como é evidente, o caminho que qualquer fármaco tem de percorrer até à comercialização deve ter em conta a sua rentabilidade futura. Embora não se saiba ao certo o que pôs fim à investigação da Pfizer, Darin especula que tenha tido algo que ver com a legalidade da marijuana medicinal, que, subitamente, passou a custar “cêntimos por quilograma” num número crescente de dispensários.
Quando a empresa publicou a patente, esta tornou-se um modelo para os chamados químicos de garagem reproduzirem a fórmula e criarem análogos. Desde então, as autoridades encontraram centenas de canabinóides sintéticos diferentes, a maioria dos quais fabricados na Ásia. As variantes da FUBINACA da Pfizer, a primeira das quais detectada no Japão em 2012, estão entre as mais tóxicas. Em 2014, dezenas de mortes ocorridas na Rússia foram associadas a um análogo chamado MDMB-FUBINACA. Dois anos mais tarde, outra variante foi a causa de overdoses em massa em Brooklyn, caracterizadas pela comunicação social como um “surto de zombies”.
SERGIY BARCHUK
Comparada com a erva apreendida pelas autoridades na década de 1990, a canábis actualmente cultivada nos EUA contém, em média, um teor muito mais elevado de THC, o principal composto psicoactivo da planta.
No entanto, Krishna Kumar espera retomar a investigação onde a Pfizer a deixou, aproveitando essa potência. Para começar, examinou como a MDMB-FUBINACA se ligava aos receptores humanos CB1 numa placa. Concluiu que se fixava melhor e que os seus efeitos activados eram mais potentes do que os de outros canabinóides sintéticos.
Em seguida, usando uma tecnologia premiada com um Nobel chamada criomicroscopia electrónica (crio-EM), fez um congelamento rápido dessa molécula de FUBINACA enquanto se encontrava fixada num CB1 e digitalizou o par com um feixe de electrões. O resultado foi uma imagem 3D, com pormenores ao nível atómico, de como o fármaco se encaixava numa prega da superfície do receptor, como uma chave numa fechadura.
A imagem deu-lhe um ponto de partida para projectar novas versões da FUBINACA que, estimulando o receptor, possam manter a potência do original, limitando simultaneamente os efeitos secundários. Para tal, Krishna Kumar pediu ajuda a Susruta Majumdar, químico e farmacologista da Universidade de Washington, cujo laboratório já demonstrara que a activação de um ponto específico de um receptor de opióides poderia inibir reacções químicas conducentes à tolerância. Seria possível fazer isto ao CB1?
Os investigadores sabiam que o CB1, primo daquele receptor de opióides, tinha um potencial ponto de ligação com qualidades semelhantes, mas permanecia nas profundezas do receptor e, na imagem de crio-EM captada por Krishna Kumar, era bloqueado por aglomerados de átomos. Também tinha o formato errado para ser compatível com a FUBINACA. A equipa de Susruta Majumdar começou assim a desenhar ligações feitas à medida para o canabinóide: cadeias de átomos capazes de ajudarem a molécula a penetrar.
Entretanto, os cientistas de Stanford optaram por outra abordagem: animando a imagem estática através de simulações informáticas, mostraram como os átomos do fármaco e do receptor se deslocavam entre si.
As simulações revelaram que os aglomerados de átomos que bloqueavam aquele ponto crucial afastavam-se esporadicamente para o lado, abrindo aquilo a que os bioquímicos chamam em inglês “cryptic pocket” [termo científico sem tradução em português, que caracteriza um ponto de ligação oculto] e permitindo aos investigadores espreitar para o interior.
Ajustando o design de modo a encaixar, a equipa de Susruta fez outro ajuste essencial na esperança de cancelar os efeitos secundários psicoactivos da FUBINACA. Afinal, o ponto recém-acessível conseguia aceitar um composto com uma carga eléctrica positiva, que impede a molécula de atravessar a membrana que separa o sangue do cérebro. Introduzindo um conjunto de átomos com marcadores eléctricos na FUBINACA, os investigadores confinaram a sua actividade aos receptores CB1 fora do cérebro – onde não conseguem provocar euforia, nem interagir com o circuito de recompensa do cérebro, limitando assim os riscos de utilização indevida e abuso.
Novas versões da FUBINACA foram injectadas em roedores que sofriam vários tipos de dor. Uma das variantes, à qual os investigadores chamaram VIP36, revelou indicadores de alívio da dor crónica com três origens diferentes mesmo após dias de injecções repetidas.
É verdade, diz Robert Gereau, neurobiólogo da Universidade de Washington, que todos aqueles ajustes moleculares diminuíram a potência do fármaco e os seus efeitos de alívio da dor. Isso poderia ter retirado a potência a outros canabinóides, mas o VIP36 manteve-se “eficaz num alcance com utilidade clínica” precisamente porque a FUBINACA era muito forte inicialmente, explica o investigador.
A VIP36 ainda está a dar os primeiros passos. Tem de ser testada em humanos, que têm menos receptores CB1 fora dos seus cérebros do que os roedores. E, por enquanto, o novo composto não pode ser ingerido oralmente – só injectado. Contudo, mesmo que este fármaco nunca chegue ao nosso armário de medicamentos, a investigação poderá abrir novas vias. Poderá até modificar a opinião dos cépticos em relação ao potencial da canábis como medicamento, como a Organização Internacional para o Estudo da Dor, cuja posição oficial, até à data, refere que a ciência ainda não provou a segurança ou eficácia dos canabinóides. Além disso, diz Susruta Majumdar, poderá haver cryptic pockets noutros receptores relacionados com o CB1, muitos dos quais nada têm que ver com a dor. Alguns foram associados à doença cardíaca ou a perturbações de abuso de substâncias. Isto abre uma possibilidade excitante: aquilo que os investigadores aprenderam sobre a forma de modificar o comportamento de um receptor poderá ajudá-los a fazer ajustes numa série de fármacos. Susruta já planeia revisitar um estudo anterior que visou, sem sucesso, um receptor de opióides de difícil acesso. Imagina o redesenho de antidepressivos e, possivelmente, de medicamentos para o cancro. “Esperamos visar doenças para lá da dor no futuro próximo”, diz. “Estamos só a começar.”
SERGIY BARCHUK
Quais são as diferenças entre a canábis verdadeira e produtos sintéticos como o K2, a spice e o delta-8?
Alguns destes substitutos de canábis fabricados em laboratório podem ser vendidos legalmente nos EUA, mas legal não é sinónimo de seguro e os canabinóides sintéticos comportam riscos. O factor perigoso é que algo promovido como “erva falsa” ou sintética pode não ser uma única droga, mas classes inteiras de químicos.
Para criar canabinóides sintéticos para consumo recreativo, os químicos clandestinos formulam compostos quimicamente diferentes do THC, mas que actuam nos receptores nervosos de formas parecidas. Uma vez que algumas dessas substâncias – comercializadas com nomes como K2 e spice – não são tecnicamente ilegais, podem ser vendidas em estações de serviço, lojas de produtos de canábis e lojas na Internet sob a designação de incenso. Contudo, muitos são comercializados de uma forma sugestiva, que alerta os consumidores para uma potencial utilização secundária das misturas químicas.
Como resultado, os centros de intoxicação dos EUA recebem centenas de chamadas por ano devido a casos de consumo de canabinóides sintéticos. Uma análise de estudos concluiu que as drogas responsáveis pela “maior toxicidade do que o THC e efeitos mais duradouros” incluem maior risco de perturbações psiquiátricas. Já foram associadas mortes a canabinóides sintéticos contendo químicos presentes em raticidas. As tentativas de proibição levaram os estados e o governo federal a criminalizarem químicos específicos, mas essas proibições apenas levaram os produtores de drogas a criar outras variantes, ainda não proibidas pela lei.
Um dos canabinóides mais recentes que explora esta zona cinzenta é o delta-8-THC. O composto psicoactivo pode ser sintetizado a partir de CBD, presente no cânhamo federalmente legal. A Agência Norte-Americana para os Medicamentos e Fármacos adverte que o delta-8 é pouco estudado e deu origem a milhares de chamadas para os centros de intoxicação. Em resumo, a compra em locais que não sejam dispensários licenciados pelo Estado requer cuidados extremos.