Quem diz saber como funcionará o mercado de produtos simbólicos daqui a cinco ou dez anos é equivocado ou mentiroso. Bolas de cristal são produtos analógicos, e a revolução é digital. Mas vale tentar.
Com sua imitação prodigiosa da linguagem humana, a IA generativa está promovendo nas artes o maior dumping da história em qualquer ramo da economia. Onde isso vai dar?
Abastecer a velha indústria cultural tomava tempo, era custoso. Envolvia aprender ofícios, dominar repertórios, comprar instrumentos, colaborar com pessoas afins, investir energia vital.
Por toda a história —até anteontem à tarde— foi esse o preço da criação artística. Sem pagá-lo não havia como escrever livros, pintar quadros, compor sinfonias, rodar longas-metragens.
A IA generativa mudou o jogo com um peteleco. Qualquer pessoa semitalentosa pode fazer tudo isso hoje do celular, sentada no banheiro. Como veremos, a escatologia aqui não é gratuita.
Sim, a democratização dos meios expressivos é milagrosa e abre fronteiras sociais muito interessantes, mesmo que um escritor de IA não “escreva”, um compositor não “componha” e um cineasta não “dirija”.
No entanto, que diferença isso faz se o produto final —aprimorado a cada dia— é um simulacro tão bem-feito que a maioria de nós seria incapaz de diferenciar a fruta do sabor artificial?
A sinuca para a banda criativa da humanidade é de bico. Óbvio que a gente não ia resistir a esse misto de brinquedo para artistas diletantes e ferramenta para artistas profissionais.
Ocorre que o brinquedo-ferramenta é também uma arma apontada para a própria ideia de arte. Com seu toque de Midas ao contrário, transforma riqueza em detrito, moldando com uma pasta genérica de linguagem objetos em série a preço de mariola.
Desde que comecei a mexer no Suno, IA de composição musical, mal saio de lá para comer, dormir e escrever esta coluna. No entanto, junto com o fascínio vem o mal-estar de saber que todos os músicos do mundo foram roubados para aquilo existir.
Comemoro que no texto artístico a IA esteja relativamente atrasada, mas não me iludo. É questão de tempo até qualquer um poder comandar a escrita de um soneto personalizado e super competente para a pessoa amada.
Será arte? Não: será uma imitação. O robô, em seus estágios atual e previsível de desenvolvimento, não tem ideia –talvez jamais tenha– do que seja arte. Nos arremeda, copiando padrões que cata em cordilheiras de símbolos acumulados em milhares de anos.
O problema é que isso deve bastar para as exigências estéticas da humanidade em nossos tempos pré-apocalípticos. Os poucos que permanecerem fiéis à velha arte orgânica terão que procurar produtos com o selo “AI free” num canto menos concorrido do mercado.
Estou a caminho da Flip, onde lanço “Escrever é humano: Como dar vida à sua escrita em tempo de robôs” (Companhia das Letras) e falo na Casa Folha na sexta-feira, às 10h, ao lado do colega colunista Rodrigo Tavares. Venham!
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